Lá me faço à estrada a ver se tenho forças para acelerar, já à luz de uma lua gigante. Passo a passo e nem vivalma, nem um carro corta a noite. Um prazer refrescante: sigo descalço e os pés agradecem o frescor. Noite fora, sem medos (tirando um tremor ou outro, um som misterioso ou outro), vou subindo com direito a postal ilustrado nocturno do turístico Algarve, com a linha da costa iluminada pelas cidades para onde os jovens da serra se vão mudando, pelos resorts que deverão começar a encher-se de turistas.
E é então que, surpresa!, faço um novo amigo, como quem diz. Um resmalhar, uns cascos a baterem no alcatrão. Cascos? Sim, fico frente a frente com um rei da serra, o poderoso javali. Mas ele teve mais medo de mim do que eu dele e desata numa corrida frenética à minha frente. Eu (e admito um susto de morte) prossigo devagarinho. Entre o javali e o cansaço, decido descansar ao resguardo de uma grande árvore antes de prosseguir. Não sei quantos minutos terei demorado a adormecer, o que sei é que só voltei à vida pelo nascer do sol, ao som de uns galos madrugadores. Toca a despertar que é tempo de voltar ao caminho. Sigo para Alferce, para o pequeno-almoço.
Quando chego à terra, esta ainda dorme. Mas há uma porta aberta que me vai levar, juro!, ao paraíso. É a dos balneários públicos que, abençoados, incluem duche de água quente. No primeiro café a abrir está a dona Ana, n’ O Caixinha. Não há muito por onde escolher, que “nem o pão chegou ainda”. Uns passos à frente, na mercearia do senhor Venâncio, depois de quase 40 anos de negócio, pouca coisa também parece ter chegado. Já tinha percebido que esta era uma terra em abandono e os meus interlocutores confirmam. Tal como acontece por todo o interior, “as pessoas vão-se embora”. E “com o fogo, isto foi piorando”, diz-me o senhor Venâncio. Ajeito as minhas compras e recebo de prenda um saco de laranjas. “São da minha produção!”.
Poderia agora retomar o trajecto oficial da via, mas ainda há pouco vi uma estrada que me promete levar ao alto da Picota, a segunda maior elevação da serra. Vou em subida incessante e, por entre campos salpicados de vermelhos e amarelos, a ascensão vai oferecendo vislumbres de toda a região, montes e horizontes, barragem e riscos de água. O sol a pique cria uma luz fortíssima que parece ondular entre miragens. A subida é agreste e vou parando aqui e ali às sombras.
Subitamente, a Heidi faz-se ouvir. Sim, não há dúvidas, há um olarepipú a invadir o silêncio serrenho. Lá de cima, surgem duas holandesas, aparentemente profissionais das caminhadas, com uma delas a fingir-se de heroina dos desenhos animados com a ajuda dos seus bastões de caminhante. Trocamos simpatias e sugestões: eu falo-lhes da "aldeia mais linda do mundo", elas sugerem-me um desvio pela Boavista, que é logo ali. Nem eu desviei para a Boavista, nem elas, apesar de me pedirem para escrever o nome da minha sugestão, terão visitado a aldeia. Mas estes encontros simpáticos tornam-nos os caminhos tão mais humanos.
Por fim, atinjo os 774m da Picota, que é afamada como o melhor miradouro para toda a área. Mas está visto que cheguei em horário nobre, com dezenas de caminhantes e turistas em altaneiro piquenique. Uma pessoa quando se habitua à solidão… Limito-me a sorrir e espero que partam para poder orgulhar-me de ter chegado aqui pelos meus próprios pés e admirar a vista de 360º de todo o litoral ao interior em volta.