No dia em que fugi de casa para ir descobrir mundo, teria eu uns sete ou oito anos, fiz uma mochilinha para o caminho com pão, umas latas de salsichas, uns livrinhos de BD, talvez água ou sumos. Pouco mais de um quilómetro depois de começar a aventura, parei debaixo de uma árvore e devorei o meu piquenique enquanto lia os meus livrinhos. Mais uns passos depois e já estava de visita ao monte da minha tia, que sempre me parecera um refúgio perfeito para escapar à aldeia cheia de gente. A minha fuga ficou-se por aqui mas estou certo que, quando o meu pai me foi apanhar ao monte na sua velha carripana saltitona, eu tinha aventuras para contar-lhe. Que as aventuras não se medem aos palmos.
Mais de três décadas depois, aqui estou eu novamente pronto a fazer-me ao caminho. Tenho já mais algumas viagens no corpo, a rota agora será outra mas lá estou eu de mãos nos bolsos, mochila às costas e um assobio para assobiar. Perguntaram-me o que é o paraíso e para que lado fica. E eu, que nunca sei a resposta a estas coisas, disse apenas “deixem-me andar”, sem planos, passo a passo. E certo será que eu rumarei para o “meu” paraíso”.
Escolho caminhos entre serra e mar, uno o Alentejo ao Algarve a pé, aproveitando os grandes projectos pedestres da Via Algarviana e da Rota Vicentina. Opto por restringir o telemóvel, o GPS, a net, quero antes deixar-me guiar pelos encontros. Vou quatro ou cinco dias, mas não quero fazer uma maratona de caminhante, para poder dar-me o direito de parar, de perder-me, de mudar de rumo. Irei (quase) sempre a pé e sozinho, é verdade, mas, como verão, conto com uma legião.
Para base da minha pequena grande aventura, escolho Lagos. Só por boas razões: não só é a “terra dos Descobrimentos”, meca turística e senhora de belas praias (até, diz-se, da “mais bela do mundo”, a, agora em obras violentas, D. Ana) como tenho aqui o meu amigo Manel, viajante dos sete costados, um manancial de dicas e informações. Falam-me do Sítio das Fontes, em Estômbar, perto de Lagos, com acesso facilitado ao primeiro troço da Via Algarviana que vou fazer, de Silves a Monchique (são só uns 28km a pé, quase sempre a subir…). Para primeiro treino de pernas, serve bem. Apanho boleia amiga para as fontes, um parque num esteiro da margem esquerda do rio Arade, entre inúmeras nascentes.
É aqui que, cercado de águas, entre sapal e matagal, ao som da passarada, dou o meu primeiro passo. Deambulo por ali até achar uma estrada velha rumo a Silves e lá vou eu, entre laranjeiras e medronheiros. Vou fazer-me à serra. Desaguo na cidade que ainda guarda pelas suas ruelas semidesérticas ao entardecer o orgulho de ter sido noutros tempos capital algarvia ou as memórias do Al-Gharb Al-Andalus e do seu príncipe-poeta. Por ali, alguém escrevinhou toda a parede de uma casa. “Incendeio o branco com palavras”, leio.
Lá em cima, o altaneiro castelo mouro. Cá em baixo… comida!, e o meu mal é fome. Faço logo uso da minha primeira guia encontrada ao acaso pelas ruas, em detrimento de tripadvisors, apps ou fugas, e a senhora há-de fazer-me acabar à volta de um belo cozido de grão no Monchiqueiro. A simpática Cristina serve-me uma dose brutal e será ela depois a encaminhar-me para o meu alojamento. À antiga, escuta os meus critérios (familiar, simples…) e lá vou eu para a Vila Sodré, onde sou acolhido pela dona Mariana. “Mas vai sozinho pela serra?, eu tinha medo!”, vai-me dizendo a senhora. Sinto-me logo em casa nesta residencial, que até tem uma grande adega familiar, horta e piscina.