Na vila, sugestões recebidas na rua enviam-me para a Taberna do Gabão, onde uma feijoada rica de choco e polvo e uma tarte de alfarroba, amêndoa e mel me enchem as medidas. No restaurante, a dona Sílvia, proprietária e cozinheira, há-de dar-me dicas de alojamento e eu escolho quase pelo nome, a Pensão Luar, ali pertinho. O senhor Raul recebe-me na sua pensão e revela-se uma simpatia, dá-me a chave do quarto e deixa-me entregue aos sonhos. De manhã, ao sabor de um pequeno-almoço substancial, ainda teremos tempo para conversar sobre a região.
Agora, estou pronto para o último troço, o mais religioso desta minha peregrinação, menos de 20km finais até à Zambujeira do Mar. É passar uma pontezinha e estamos no Alentejo, fazer a margem direita da ribeira e subir até à Ponta em Branco, de onde é magnífica a vista sobre a praia de Odeceixe, a ribeira de um lado, uma “ilha ao centro”, o mar do outro. Costa fora, sigo por trilhos à beira da costa escarpada, com a companhia de gaivotas e cegonhas, por vezes de um caminhante ou outro, por entre uma explosão primaveril de cores.
Cruzo o porto de pesca das Azenhas do Mar e sigo até à praia da Amália, assim chamada por a fadista ter tido aqui a sua segunda casa. E não resisto, baixo ao areal — há uma velha escadaria em cimento mas com salto final dado com ajuda de uma corda... Sozinho na praia, roupa fora, mergulho na água gelada. De volta ao tour, a ligação à rota faz-se por um caminho em que as árvores quase fecham em túnel fabulatório. Também leva logo a seguir às estufas, indústria intensiva que parece estar a tomar boa parte do parque natural...
Entre os recortes surpreendentes da costa, os trilhos que seguem à sua beirinha ou nos afastam mais para dentro, até para proteger zonas sensíveis, vou passando as praias da minha vida. No plano seguem-se a praia dos Machados, à qual, reconheço, já nem consigo perceber a descida. E a minha mais familiar praia do Carvalhal, areal aberto em vale de praia, praia que é o abraço do meu pai, aqui nascido.
Daqui ao nosso destino final é um pulinho, por entre trajectos marcados por formas escultóricas milenares ou raízes e madeiros que parecem assumir figuras mitológicas. Subitamente, no horizonte, a faixa urbana da aldeia. Passada a praia dos Alteirinhos, onde uma cascata ou as rochas pintadas a limos criam um quadro vivo impressionante, aí está, a branco e azul, a Zambujeira do Mar. Corto pela praia, só pelo prazer do areal e de molhar os pés, com o sol já a começar a cair. Subo pela escadaria até ao largo da terra e, antes de chegar ao meu verdeiro paraíso, páro na esplanada do café Martinho para comer o mar em forma de um pratinho de perceves. Depois, muito mais de uma centena de quilómetros após o início desta demanda, corro para casa, abro a porta, largo a mochila, largo tudo no chão.
E aí está o meu derradeiro paraíso, enquanto o tempo o permite. É um monumento natural, que também durante anos foi anfitriã de muitos turistas por esta terra-mar. Cabelos brancos a cair pelos ombros, 79 anos, olhos a brilhar quando me vê chegar, dois braços abertos para mim.