Já a havia visto iluminada, numa noite de Verão, há alguns anos, mas nunca tão majestosa e sedutora como agora. Sem ela, a cidade e o mercado de Natal não teriam o mesmo encanto. As luzes que dela emanam projectam-se sobre os pequenos chalés de madeira e a magnificente praça, mas ocultam grande parte da sua própria beleza, como alguém, um ser com vida própria, que pretende passar despercebido num evento em que não é protagonista. Mas a Cathédrale Notre Dame não pode, nem mesmo neste período do ano, com o espírito de Natal tão impregnado em cada rua e viela de Estrasburgo, ser desprezada, sob pena de estarmos a perder o que de mais valioso oferece esta cidade da Alsácia que mudou quatro vezes de nacionalidade entre 1870 e 1945, balançando entre o galo francês e a águia alemã.
Fica a promessa de regressar, no dia seguinte, quando a luz do dia incidir sobre ela, deixando ver os seus mais ínfimos detalhes, como verdadeiro ícone desta cidade que é “a alma em movimento”, como lhe chamou o poeta, compositor, novelista e filósofo alemão Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), que estudou leis em Estrasburgo.
Bastião do protestantismo
Se Bordéus conquistou, no início do ano, o estatuto de destino europeu em 2015, sucedendo ao Porto, Estrasburgo, cujo coração histórico é Património da UNESCO desde 1988, arrebatou o prémio de melhor mercado de Natal. A tradição remonta a 1570 e, se não é o mais antigo da Europa, não restam dúvidas de que tem esse estatuto em França – e com uma atmosfera única. Por esse tempo, mais de um século antes de ser anexada pela França, Estrasburgo era governada por clãs que conferiam à cidade um certo carácter democrático. Eleita por alguns dos líderes da Reforma, Estrasburgo rapidamente se tornou num importante bastião dos protestantes que, a despeito dessa aparente democracia reinante, expressavam a sua intolerância perante outras manifestações de fé.
Ao contrário do que sucedeu em muitas cidades francesas, em Estrasburgo o protestantismo foi ganhando terreno até finais do século XVI, por via de algumas alianças, uma delas com Zurique. A situação atingiu contornos tão dramáticos que, em 1592, na sequência da morte do bispo luterano Jean de Manderscheid e múltiplas e intermináveis deliberações, a catedral que tenho à minha frente, banhada por tanta luz, foi dividida entre católicos e protestantes, cada uma com o seu bispo.
Esta rivalidade conduziu rapidamente as duas partes a um conflito sangrento, conhecido como a Guerra dos Bispos, na qual se envolveram os camponeses de uma e de outra facção e que se prolongou até 1604. Alcançado um acordo, o cardeal da Lorena, candidato católico, foi nomeado bispo, continuando a residir em Saverne (a escassos 45 quilómetros de Estrasburgo) e a beneficiar das receitas e dos direitos sobre as terras episcopais; mas a catedral, que em meados do século XVII, votada ao abandono, chegou a ser palco privilegiado de indigentes, manteve o culto luterano até 1681, altura em que Estrasburgo foi anexada pela França.
É dentro deste contexto histórico que os cristãos, em permanente luta pelo poder religioso com os protestantes e com a sua intolerância face ao que classificavam como “extravagantes” tradições católicas tão fortemente associadas ao nome dos santos, decidem substituir o mercado de São Nicolau pelo de Christkindelsmärik, o mercado do Menino Jesus.