E por onde havia eu de entrar?
São dois ursos, as estrelas brancas tombando pela parte inferior do corpo todo dourado, quase desenhando uma meia-lua, os braços sem grande definição, como se segurassem duas bolas, as orelhas e o nariz com contornos e, encimando as cabeças, como a ponte de uns óculos em arco, ligando um urso ao outro, mais estrelas. Sob um fundo vermelho, em letras garrafais, duas linhas que se recortam a branco:
Strasbourg
Capitale de Noël.
Acabo de atravessar a Porte des Lumières, a porta das luzes e de acesso a um território mágico, cintilante, admirável mundo que é sempre novo para as crianças e que parece cada vez mais distante para os mais velhos.
A música acompanha-me.
C’ est la belle nuit de Noël
La neige étend son manteau blanc,
Et les yeux levés vers le ciel
à genoux, les petits enfants,
Avant de fermer les paupières,
Font une dernière prière
A canção é alusiva ao Natal mas dou por mim, sozinho e, ao mesmo tempo, sem me poder queixar de solidão, a pensar num facto que me passou despercebido durante muitos anos e que, muito provavelmente, nunca foi sequer equacionado, até aos dias de hoje, por muitos daqueles que visitaram Estrasburgo ou têm programada uma viagem para esta cidade.
O hino francês.
A Marselhesa foi escrita em Estrasburgo, no longínquo mês de Abril de 1792, num tempo em que já se anunciava a guerra com a Áustria. O presidente da câmara defendia que o exército devia cantar, enquanto marchava e espalhava o desabrochar da liberdade, ao longo dos países da Europa que ia atravessando. E, nesse sentido, abordou Claude Rouget de Lisle, um jovem militar engenheiro com pouca ou mesmo nula reputação como compositor que, numa noite, escreveu “Cântico de Guerra do Exército do Reno”. O presidente, talvez desconfiando das qualidades do autor, foi o primeiro a entoar a canção, em casa, precisamente no lugar onde agora se encontra, em Estrasburgo, o Banque de France. A letra tornou-se tão popular que logo em Agosto desse mesmo ano era cantada pelos soldados voluntários que, partindo de Marselha, iniciavam a sua marcha em direcção ao Norte para defender a Revolução – e não foi por acaso que Serge Gainsbourg escolheu Estrasburgo para cantar, na década de 1980, Aux armes et caetera, uma provocação, uma versão revista e corrigida d’A Marselhesa de Rouget de Lisle.
Sangue e Pai Natal têm em comum o vermelho. Prefiro o segundo e as músicas da época, tão enternecedoras. Em Estrasburgo, palco de tantas guerras, a vida é feita de paz, não fosse a cidade o símbolo da reconciliação entre França e Alemanha (130 mil alsacianos foram incorporados, durante a II Guerra Mundial, na Wehrmacht, com um saldo trágico de 32 mil mortos e de outros tantos mutilados).
Petit papa Noë
Quand tu descendras du ciel,
Avec des jouets par milliers,
N’oublie pas mon petit soulier.
Mai savant de partir,
Il faudra bien te couvrir,
Dehors tu vas avoir si froid,
Cést un peu à cause de moi.
Não há Natal sem catedral
São familiares e festivos os sons que me chegam aos ouvidos e eu permito que os meus passos, vagarosos e calcando a neve, enegrecendo-a, abram caminho pelo meio da multidão, por entre sorrisos de crianças que vivem de forma tão intensa esta felicidade que para elas, na sua puerilidade, nada tem de efémera. Os pais também se divertem, de uma forma diferente, preenchendo a alma com recordações e aquecendo o corpo com uma bebida quente, felizes por verem os seus filhos felizes, e percebendo, ao contrário destes, como é ténue a fronteira entre a realidade e o imaginário.