A diversidade coexiste, ainda assim, e por mor de uma possante matriz, a chinesa, com certas constantes culturais: a ausência à mesa de instrumentos cortantes, o protagonismo de ingredientes preparados em pedacinhos e muitos outros pormenores que não escaparam à observação atenta e interessada de Frei Gaspar da Cruz, missionário português em terras do Oriente no século XVI, que os registou no seu Tratado em que se contam muito por extenso as cousas da China: “E logo estavam dois pauzinhos dourados, muito galantes, para comer com eles metidos entre os dedos; usam deles a modo de tenazes, de maneira que nada do que está à mesa tocam com a mão, e ainda que comam uma porcelana de arroz com aqueles paus, comem sem lhes cair grão. E porque comem muito limpamente, sem tocar com a mão no comer, não têm necessidade de toalhas nem de guardanapos; e à mesa lhes vem tudo cortado e mui bem preparado.”
O que fazer com estas especiarias?
Entre uma Chinatown e uma Little India, entre uma praça rodeada de barraquinhas de pitéus e uma fileira de provedores de batidos de fruta tropical, o viajante interessado em comida de rua tem diante de si uma imensa rede de vielas e praças e esquinas a regurgitar cozinhas ambulantes (pelo menos uma boa parte delas andam sobre rodas) e odores capazes de incendiar o apetite a um desfalecido. Cada barraquinha tem sua especialidade — esta é uma constante na cultura da comida de rua —, mas se houver mais do que uma para cada petisco pode bem valer a pena testar as artes da concorrente.
Não são os aracnídeos e os insectos fritos — que encontramos por vezes em alguns lugares — os ingredientes principais da comida de rua, desfaça-se a mistificação. São o arroz e os esparguetes, os populares noodles, ambos muito variados, os legumes, os molhos picantes, o catálogo amplo de especiarias e as pastas de malagueta e de camarão que têm um papel relevante em quase todas as artes culinárias orientais. As técnicas, essas, podem variar muitíssimo e a paleta de sabores acaba por se revelar um arco-íris sem precisarmos, sequer, de mudar de rua. “A cozinha é a arte de dar relevo aos sabores”, diz Olívia, personagem de Sob o sol jaguar. Dispor de especiarias não basta: é essencial saber o que fazer com elas.
De Chiang Mai a Penang, de Hanói a Singapura, de Phnom Penh a Malaca, de Luang Prabang a Surabaia, esta é uma jornada saborosa, de pousada e mesa incertas, em deambulações norteadas pelas fantasias do paladar — e não raro é encontrar-se no Sudeste Asiático quem por lá se ache assim, em viagens tão-só gastronómicas. O empreendimento arma-se de uma dimensão ciclópica tão desmedida quanto a de fazer inventariação abreviada das invenções culinárias locais, um universo sem fim de combinações de ingredientes e sabores — ácidos, picantes, doces, salgados, amargos, adstringentes.
Uma lista de preferências, ainda que não sumária e reduzida aos exemplos que têm uma representatividade nacional, será sempre incompleta: larb (uma salada de carne com vegetais do Laos, cogumelos, especiarias, menta e um molho especial preparado com peixe curado do Mekong), pad thai (noodles de arroz com camarão, molho picante e tamarindo) e som tam (salada de papaia com peixe ou camarão e caju), ambas especialidades tailandesas, nasi goreng (arroz frito com vegetais, ovo e carne ou camarão), receita muito apreciada na Indonésia mas frequente também na comida de rua de outros países da região, pho (uma sopa vietnamita com variação de ingredientes, basicamente composta por noodles de arroz, carne e rebentos de soja, temperada com anis, gengibre e limão), nasi lemak (especialidade malaia que consiste em arroz cozido com leite de coco, especiarias, carne e vegetais variados), amok trey (peixe com leite de coco e caril, servido em folha de bananeira, a que se junta, por vezes o kroeung, uma pasta de cardamomo, cravinho, anis, canela e outras especiarias) ou samlor machu trey (uma deliciosa sopa de peixe), ambas receitas da cozinha khmer do Camboja, cao lau (noodles com tirinhas crocantes de carne de porco, alface, hortelã e ervas aromáticas, uma especialidade de Hoi An, no Vietname).