Narrativas como esta, sobre os saberes e os sabores que o Oriente leva à mesa, não podem aspirar a ser mais do que moderados exercícios “literários” — no sentido de juntarem umas quantas letras em busca de sentido. Fundamental é mesmo engolir o mais possível os países por onde viajamos, “fazendo-os passar pelos lábios e pelo esófago”. Enfim, o nosso Luís Vaz de Camões, muito viajado pelas bandas do Oriente, que não terá sido aventureiro de subestimar o enunciado de Calvino, dizia, ainda que de outro assunto tratasse o verso, que “melhor é experimentá-lo que julgá-lo”.
Sabores de Penang
Em 2008, Malaca e George Town, capital da ilha de Penang, passaram a integrar a lista da UNESCO pelo valor que detêm enquanto espaços de memória e de herança da cultura nyonya, a cultura dos descendentes das primeiras comunidades chinesas que se instalaram na península, a partir do século XV. As duas cidades são fruto da miscigenação entre a cultura dos recém-chegados à cultura local malaia, mas ambas integram também abundantes sinais do encontro entre o Oriente e o Ocidente: com a Europa portuguesa e holandesa no caso de Malaca, e com o império britânico oitocentista no caso de George Town.
Penang tem andado nas bocas do mundo — literalmente — por causa de um aspecto particular dessa mestiçagem: a ilha é reconhecida, também, como território paradigmático da fusão altamente criativa de culturas gastronómicas — a chinesa, a indiana e a malaia — e tornou-se um lugar de peregrinação para qualquer viajante que subscreva o enunciado de Italo Calvino de que para se conhecer verdadeiramente um país temos de começar por o engolir. Se há um lugar onde podemos apreender gustativamente o fenómeno da multiculturalidade, esse lugar é Penang, designadamente a capital, George Town.
Com exagero, obviamente, pela impossibilidade de objectivar critérios consensuais para tal classificação, a comida de rua de Penang tem sido citada como a melhor de todo o Sudeste Asiático, de toda a Ásia e, até, do mundo — não têm faltado publicações e guias de viagem elegendo, ano após ano, a ilha como um paraíso gastronómico. Modas à parte, cada coisa no seu lugar: toda a região encerra singularidades gastronómicas não redutíveis a tão absurdas catalogações. E, todavia, bastam duas ou três experiências à mesa para o viajante se deixar embriagar pelo espírito da hipérbole — que, de resto, é subscrita por toda a Malásia, onde se venera incondicionalmente a gastronomia de Penang. As artes culinárias da cultura nyonya muito apreciadas em Malaca e com uma superlativa expressão em George Town, são uma das razões para a eleição de Penang como destino gastronómico, mas a lista de especialidades acena com muitas outras tentações.
Tal como noutros lugares da Malásia, o arroz e as noodles são bases omnipresentes de muitas receitas e as diferenças são acentuadas sobretudo pelas técnicas de cozinha e pelos modos como são misturados os ingredientes. O char koay teow é um dos pratos mais populares localmente e não é preciso andar muito para dar com ele: há muitas barraquinhas, um pouco por toda a parte, que o têm como especialidade principal ou única. Noodles de arroz, camarão previamente passado por alho no wok, rebentos e molho de soja, uma pasta picante e tiras de cebolinho, tudo beneficiando de uma cozedura contida — eis uma receita que a qualquer hora podemos degustar em Penang. Do mesmo género, e igualmente omnipresente, é a receita de hokkien mee, que pode combinar diferentes tipos de noodles misturadas com pedacinhos de carne de porco, espinafres, caldo de camarão e pasta de malagueta convictamente picante.