Fugas - Viagens

  • Banca
de comida
no mercado
de Ayutthaya,
na Tailândia
    Banca de comida no mercado de Ayutthaya, na Tailândia
  • a
Chinatown de
Kuala Lumpur
    a Chinatown de Kuala Lumpur
  • uma banca
de comida de
rua em Phnom
Penh, no
Camboja
    uma banca de comida de rua em Phnom Penh, no Camboja
  • um mercado
de Chiang
Rai, no Norte
da Tailândia
    um mercado de Chiang Rai, no Norte da Tailândia
  • espetadas
de legumes,
cogumelos
e tofu num
mercado
nocturno
na Malásia.
    espetadas de legumes, cogumelos e tofu num mercado nocturno na Malásia.
  • Sabores
de Penang
    Sabores de Penang

Ásia: há um continente inteiro para provar nas ruas

Por Humberto Lopes (texto e fotos)

A fortuna gastronómica de um país ou de uma região surge muitas vezes associada à diversidade étnica e cultural. A prova é a espantosa aguarela de sabores da comida de rua asiática, uma das mais tentadoras motivações para uma viagem ao Oriente.

Haverá incontáveis modos de viajar, porventura tantos quantas as motivações. Os viajantes que, como Zenão, o personagem de Marguerite Yourcenar, desejarem manter os olhos abertos e curiosos até ao último segundo de vida, encontram nas páginas de Sob o sol jaguar, um conto de Italo Calvino, uma lúcida iluminação, cuja sabedoria transcende o estrito domínio da gastronomia. Propõe Calvino que “a verdadeira viagem, enquanto introspecção de um ‘fora’ diferente de um nosso habitual, implica uma mudança total de alimentação, um engolir o país visitado, na sua fauna e flora e na sua cultura (...), fazendo-o passar pelos lábios e pelo esófago”.

A enunciação de Calvino também pode ser tomada como uma poderosíssima metáfora, num tempo em que as agências de viagem prometem (e os turistas a si mesmos) viagens reais a mundos “exóticos” ou inverosímeis evasões tão assépticas quanto fiéis ao mais rigoroso espírito securitário. Em Sob o sol jaguar, texto cujo assunto de eleição é o paladar, sugere-se que o viajar deve constituir uma experiência total, requisito indispensável nestes tempos pós-modernos de contínuos simulacros, em que o destino da viagem deixou de ser o que figurava, antes, nos mapas e se viu substituído por vistosas colecções de postais em tamanho natural: “Este é o único modo de viajar que tem sentido hoje em dia, quando tudo o que é visível se pode ver até na televisão sem nos mexermos do sofá.”

Engolir cultura, no sentido mais estrito do primeiro termo da expressão e no mais amplo do segundo, seria, neste filosofar de Calvino, uma fórmula da ideia da viagem como processo e instância de aprendizagem. No caso do continente de sabores asiático, a apreensão da multiculturalidade e das suas manifestações por via da experiência da comida de rua significa recuperar um pouco da relação com o real e, sobretudo, honrar o compromisso da verdadeira e honesta viagem — o esforço de descentração cultural e a mitigação do fatal etnocentrismo do viajante. E, claro, obviar as traições habituais a que costumamos condenar as papilas gustativas, já que, como acrescenta o nosso Calvino, “não se tem o mesmo resultado frequentando os restaurantes exóticos das nossas metrópoles: estes falseiam tanto a realidade da cozinha a que pretendem fazer referência que, do ponto de vista da experiência cognitiva que se pode extrair, equivalem não a um documentário, mas sim a uma reconstrução ambiental num estúdio cinematográfico”. Que outro lugar haverá, portanto, melhor do que a rua para se engolir um país?

Da matriz chinesa à multiculturalidade

Tema de capa de uma edição da revista Time há algum tempo, a comida de rua asiática goza de um justificado prestígio: ela testemunha a permanente fusão cultural, a convergência inventiva de uma impressionante variedade de sabores e ingredientes e os saberes de gente que tem longínquas e comuns matrizes étnicas — as da grande e mui antiga China imperial.

Mas a comida de rua representa, na sua imensa variedade, tal como naquilo que partilha além-fronteiras, o desenrolar de caminhos singulares, de diferentes percursos culturais e sociais das sociedades da região. Vale a pena olhar para o exemplo da experiência histórica da Malásia e para a composição da sua sociedade. Primeiro, os chineses juntaram-se aos malaios no século XV, e foram depois os indianos chegando, levados pelos ingleses para mão-de-obra da economia colonial. Para esta caldeirada cultural também contribuíram, a seu tempo, temperos portugueses, holandeses e ingleses, pelo que a justiça impõe que se rabisque que as gastronomias ditas tradicionais — tal como nos ensina a história dos paladares asiáticos — muito devem umas às outras. Mesmo se podemos relatar uma interminável lista de invenções culinárias singulares em diferentes culturas, o contacto e a permeabilidade entre elas e a convivência e simultaneidade no espaço e no tempo de técnicas, ingredientes e condimentos acabaram por constituir o contexto da paleta com que se desenha a riqueza e a variedade gastronómica do Sudeste Asiático.

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