O molho “não tem segredo”, diz dona Teté, sempre elegante nos seus vestidos de capolana coloridos, impecavelmente penteada, linda nos mais de 50 anos que não se adivinham. Claro que o molho avermelhado e picante tem segredo. E é por isso que a anfitriã passa o jantar de colher em punho, a verificar se temos suficiente no prato.
Esta noite o jantar começa com salada de polvo e segue para os peixes grelhados ali mesmo, ao lado da esplanada que é também o quintal da dona Teté. Cherne, barracuda, corvina e pargo, fruta-pão e banana-prata cozidas a acompanhar. Para a sobremesa mousse de café ou de cajamanga, uma fruta muito doce, mais pequena e fibrosa do que a manga, com casca parecida à da pêra e um espinho no meio.
O restaurante da dona Teté, em São Tomé, a capital de São Tomé e Príncipe, não é fácil de encontrar. Fica perto da grande avenida Marginal 12 de Julho, junto ao mar, mas está escondido, numa rua escura de casas de habitação e só abre para jantar. Ela promete pôr mais placas a indicar o caminho. Nós prometemos que vale a pena cada curva errada.
É difícil comer mal em São Tomé, mas na casa da dona Teté é impossível. A lógica é simples. Não há lista e o que vem parar à mesa é o que de mais fresco se encontrou no dia. Quase sempre peixe, como faz sentido por aqui, tem é de passar no crivo desta cozinheira que vai no terceiro restaurante. “Já tinha decidido parar. Este é mesmo o último”, garante Teté. É aproveitar enquanto se pode.
A comida da dona Teté é especial. A simpatia de uma senhora ocupada de manhã à noite que se oferece para ir connosco comprar as melhores capolanas também. Mas comida boa e gente simpática é o que define São Tomé. Das tascas de rua aos restaurantes que usam os produtos locais com técnicas trazidas de outras paragens, o milagre é que é tudo quase sempre delicioso. Num país pobre e pequeno — menos de 200 mil habitantes em 1001 quilómetros quadrados se juntarmos as duas ilhas principais e várias ilhotas — mas rico em ervas aromáticas, tubérculos, fruta e peixe, basta ter engenho e saber usar o que está à mão.
Na dona Teté não há arroz. Faz sentido, não há arroz no arquipélago.
“Arroz 13 mil” foi um dos slogans com que o primeiro-ministro, Patrice Trovoada, chegou à maioria absoluta nas eleições de Outubro de 2014, dois anos depois de ter sido afastado por uma moção de censura da oposição. Antes, o arroz chegava a custar 27 mil dobras o quilo; agora, o preço, pelo menos o oficial, está mesmo nas 13 mil. Este mês entra pela primeira vez em vigor um salário mínimo no país: um milhão e cem mil dobras (pouco mais de 44 euros) para o sector público, entre 800 mil (empresas familiares) e um milhão e seiscentas mil (grandes empresas) para o sector privado.
Matabala e banana
O arroz ainda é a base da alimentação. Mas para o substituir está a ser incentivada a produção de tubérculos. Matabala, por exemplo. Feio, como os tubérculos costumam ser, é parecido com a batata doce, pode ser branco ou avermelhado. Frito é um petisco impossível de parar de comer. Infelizmente, ainda não se pode comprar em saquinhos, como a banana frita que se encontra à venda junto ao mercado do peixe e nas ruas que vão deste até ao mercado da fruta.
Aqui, o segredo é encontrar a utilidade de cada coisa. A partir das palmeiras faz-se óleo e vinho de palma, mas também carvão. O líquido que se extrai da semente é usado, como quase tudo o que cresce da terra, para fins medicinais. Neste caso, dá-se a bebés com problemas de estômago.
Lionel, guia do Jardim Botânico Bom-Sucesso, porta de entrada no Parque Natural Obô, que cobre 235 quilómetros quadrados de São Tomé e mais 85 no Príncipe, demora-se a descrever-nos flores como as orquídeas que “crescem nas árvores sem precisar de terra”; a rosa porcelana, de caule e folhas mais grossas do que as rosas a que estamos habituados; ou arbustos como o bico-de-papagaio, de onde nasce uma flor com a forma de um bico vermelho vivo e contornos amarelos e esverdeados que é um dos símbolos do país.
“A esta planta chamamos bordão do macaco, é medicinal, usada para fazer massagens com outras ervas que colhemos na floresta, e o suco do caule evita infecções intestinais. Também se usa em banhos para ajudar as senhoras a recuperar depois do parto”, descreve. “Aqui temos bunga, que é considerada uma planta sonífera. Se apanhares a folha e colocares num copo com água ou com vinho e deixares cinco, dez minutos, a seguir bebes e vais dormir 24 horas seguidas”, assegura.
Por aqui também se encontram os diversos tipos de micocó, da que é usada na culinária e se diz ter poderes afrodisíacos, à, “micocó-campo, usada em chás para a asma e problemas respiratórios” e com um cheio forte a citrinos.
Pau-parto, pau-três
Num país com 350 espécies que se acredita terem aplicações terapêuticas, Lionel pode falar o tempo que cada um tiver para o ouvir. Vai mostrar a árvore cata-grande, cuja “casca é usada para fazer baixar a tensão arterial e tratar diabetes”; a “casca da nêspera do bô, para problemas de hérnias”; as folhas “pau-parto ou pau-cabra, onde as senhoras tomam banho quando estão a entrar em trabalho de parto”; “a planta da quina, que é usada em chás para a malária”; “a marapião, usada para dores de dentes: a casca encosta-se ao dente que dói e ele vai partindo até cair; “o pau-sangue, para a anemia”; “o pau-três que evita tosse e dores de barriga e também ajuda o fracasso sexual”...
Quem também gosta de brincar com as capacidades medicinais das ervas, acrescentando-lhe divagações sobre o erotismo da gastronomia, é João Carlos Silva, dono do restaurante-pousada na sua roça, a São João, em São João dos Angolares, e autor de livros e programas de televisivos como Na Roça dos Tachos ou Sal na Língua, que entretanto também abriu a Teia das Artes, onde se formam artistas, e explora o Centro de Artes CACAU.
A sua roça fica quase no Sul da ilha e para lá chegar atravessa-se o rio Manuel Jorge e a Ribeira Afonso, onde das primeiras horas da manhã até meio da tarde há centenas de lavadeiras a esfregar roupa e a deixá-la secar ao sol. Mesmo antes da ribeira fica a Boca do Inferno, fenómeno natural com uma ravina que as águas percorrem direitinhas a uma gruta, formando ondas que crescem até rebentarem com estrondo na rocha negra. Cá em cima, entre o verde das árvores, com vista para o azul do mar e o negro do chão, há um quiosque de pedra para beber água de coco.
João Carlos já está à nossa espera para um almoço que é todo um festim, um menu de degustação com tantos pratos que acabamos por lhes perder a conta. Antes de começar, é preciso passar pelo “spa de boca”. “Tire um gomo de cacau, é só chupar. Agora um grão de pimenta com um pedaço de chocolate, mastigue junto. A seguir, isto, pasta de gengibre. E um copinho de vinho”, explica Zé Luís, o mais experiente dos ajudantes do chef. O conjunto é muito forte, mas permite o efeito pretendido, limpar o paladar de tudo.
“Agora estou a fazer um ceviche de espadarte que fui cortando aos bocadinhos e pus a marinar. Vamos pôr uma camada de erva-mosquito com a pimenta, escorrer o peixe que está nesta espécie de leite de tigre, agora pomos mais uma camada de erva-mosquito e coentros selvagens por cima”, descreve, enquanto vai picando ervas. Ao coentro selvagem em criolo de São Tomé, “criolo forro, chama-se selo sum zo maiá, selo é sumo, sum zo senhor João, maiá, Maria”, diz. “Terá sido um alentejano que aqui veio parar e se apaixonou por uma crioula. Ela foi contar a uma amiga e disse que o cheirava a um português chamado João Maria. É a história. Será verdade?”
Fura-cueca e bolo de cuscus
Na roça, onde em breve vai nascer “uma oficina de cozinha para 15 alunos”, João Carlos continua a cozinhar e é Zé Luís que nos vai trazendo os pratos. Ovas panadas com batata doce, salada de papaia verde com erva-príncipe, mel e baunilha fresca, atum de vinagrete, tomate grelhado com raspa de chocolate e laranja, mais um toque de canela (um prato chamado Lábio), omelete de micocó (“afrodisíaca”, insiste o anfitrião), abacate fresco com azeite e gengibre, manga com flor de sal e limão... Ainda falta o prato principal, “feijoada à moda da terra, com choco e atum, cozinhada com pau-pimenta, micocó, óleo e fura-cueca”, o nome do molho picante que este chef prefere usar nos seus pratos.
Há duas aniversariantes a almoçar na roça e é preciso improvisar. “Como não estávamos preparados fizemos um cuscus de mandioca ralada com farinha de milho, cozido ao vapor. Leva canela e eu agora pus-lhe umas lágrimas de mel. É assim que os cabo-verdianos fazem”, explica João Carlos. “Nasci numa roça aqui perto, Dona Augusta, aos cinco anos saio e vou para Gratidão, cresço na Gratidão, sempre com cabo-verdianos. Só por volta dos 12 anos, quando o meu pai abre o restaurante dele, é que vou viver para São Tomé. Mas o primeiro bolinho que eu provei é cabo-verdiano, o primeiro caldo que comi foi cachupa, as primeiras músicas que ouvi foram morna e coladeira.”
Da varanda de madeira com vista de postal do restaurante da Roça de São João as palmeiras são omnipresentes. Não é só aqui, as palmeiras são uma presença constante e há uma que é uma espécie de brinde, chama-se palmeira-leque e é diferente de todas. Desiludiu-nos descobrir que não é endémica, durante a visita ao Parque Natural, mas a desilusão durou pouco. “Está cá há tanto tempo, é como se fosse”, diz António Alberto, sócio da Roça Saudade e o homem da grelha. Ele diz, nós acreditamos. Afinal, São Tomé é conhecido pelo cacau e pelo café e ambos vieram do Brasil. O colonialismo trouxe novidades e houve espécies que se perderam. Felizmente, ainda há muito de original para nos deslumbrar por aqui.
Roças e cooperativas
A Roça Saudade é uma das quase 150 do país, a maioria situadas na ilha principal, umas dezenas ainda na ilha do Príncipe. As roças eram as fazendas coloniais, foram o que ordenou territorialmente o país, e em cada uma ainda se vê a Casa Grande, onde vivia o chefe do escritório, o refeitório dos brancos, as senzalas, o hospital, a escola primária, a capela. Nalgumas vivem centenas de pessoas, noutras mais de mil, e a maioria está em muito mau estado.
Com a independência, o Estado entregou a habitação e a exploração das fazendas aos trabalhadores que já lá viviam, mantendo-os como assalariados. Em 1998, Governo, Banco Mundial e FMI concluíram que as roças não eram rentáveis. Decidiu-se pôr fim à nacionalização e quem tinha título de posse recebeu um pedaço de terra para explorar. Muitos venderam os terrenos, outros construíram casas e foram em busca de trabalho nas cidades.
Há casos de algum sucesso, como a Roça Água-Izé, onde uma cooperativa que produz cacau emprega 30 pessoas em permanência — foi aqui que se plantaram os primeiros grãos de cacau ilha, em 1952, trazidos do Príncipe, onde tinham chegado do Brasil 30 anos antes. Odair, 29 anos, trabalha na Água-Izé desde os 12. Fez de tudo e agora é serralheiro, repara as máquinas, os rolamentos. Mostra-nos os secadores ao ar livre, “a estufa que só é usada quando há mais produção”, as quatro filas de “caixas para a fermentação com buracos por onde vai escorrendo a goma que o cacau traz quando chega”.
Os homens apanham o cacau e usam as grandes pás com que ele vai sendo virado e passado de caixa em caixa. Depois de seco, são as mulheres que “fazem a separação nas mesas de escolha” e dividem o cacau em categorias. “Daqui, por semana, podem chegar a sair 10, 15 toneladas. Vai tudo para a Suíça, de navio, pára em Portugal e segue.” Longe vão os tempos em que São Tomé era o maior produtor mundial de cacau, ainda que este continue a representar 90% dos lucros das exportações do país.
Odair tem mulher e dois filhos, uma menina de cinco meses e um rapaz de três anos. Vai ficar por aqui, garante. “Eu não fui criado pelos meus pais, mas pela minha avó. Tinha cinco ou seis crianças a cargo, meus irmãos e primos”, conta. A mãe vive e trabalha aqui, na separação do café. “O meu pai era cobrador de impostos, mas não me ligava, tinha muito mulherio. Ultimamente, perguntei-lhe e ele disse que nós já fomos 50, muitos morreram, ficaram 18 filhos. Só quando cresci é que fui saber dele. Depois, andei de bicicleta, de Norte a Sul, à procura dos meus irmãos”, diz Odair, que agora tem um almoço mensal, a cada mês na casa de um dos irmãos.
Se Água-Izé tem algum sucesso, a roça Monte Café tem muito. Aqui, já 250 pessoas se organizaram para produzir café biológico e é possível visitar um museu onde se aprendem todos os passos da produção e um bilhete de dois euros dá direito a provar um dos dois tipos existentes na ilha, o Robusta e o Arábica.
Almada Negreiros
Saindo da capital, no Nordeste da ilha, apanha-se a estrada Nacional 3 e segue-se para sul, sempre por dentro, até chegar ao Monte Café, a 640 metros de altitude. A caminho da Roça Saudade, o ar vai ficando mais fresco e a vegetação mais densa. A 800 metros de altitude, esta fazenda não era fácil de encontrar até há bem pouco tempo. Era aqui que vivia a família de Almada Negreiros e foi aqui que ele nasceu, em 1893. Joaquim Victor também nasceu aqui e a sua família era dona da parte do terreno onde se encontravam as ruínas da casa de três andares, colunas e alpendre que ele descobriu ter sido a primeira do artista português.
As ruínas foram reconstruídas e desde o fim de 2014 já há aqui a Casa Almada Negreiros, um museu que há-de crescer, e o restaurante da roça. Joaquim e o sócio, António, o homem da grelha, dividem tarefas. O primeiro está de saída para levar turistas numa excursão. O segundo prepara as espetadas de atum antes de nos mostrar o museu.
O ajudante, Emanuel, já sabe o suficiente para explicar o que nos vai trazendo para a mesa, numa varanda que parece erguida entre a floresta e onde os únicos sons que interrompem a conversa são as gotas da chuva nas árvores e o canto suave do ossobô, um pequeno pássaro de asas verdes. Lá em baixo vê-se um vale e, mesmo, mesmo ao fundo, o mar.
A uma salada de búzios com mandioca cozida e depois frita, tomate e salsa, segue-se uma entrada onde o protagonista é uma espécie de peixe-agulha, cozinhado com banana-pão, azeitonas e baunilha. Há mais, mas temos de nos controlar para chegar ao prato regional lussua, com beringelas, tomate, cebola e um arroz de erva-mosquito (que cheira a maracujá) e coentros selvagens.
Para o fim fica a visita à Casa Almada Negreiros, onde encontramos a sua certidão de nascimento (7 de Abril de 1983; mãe – Elvira Sobral, filha de serviçais angolanos; pai – António Lobo de Almada Negreiros, administrador do concelho), réplicas de quadros e desenhos seus, livros sobre o artista ou uma fotografia das ruínas tirada em 1970.
“Antes não se sabia nada sobre ele, mas agora já começa a ser estudado nas escolas”, diz Emanuel. A parede do piso térreo, com vista para a grelha, está pintada com palavras do artista: “Mãe! Passa a mão pela minha cabeça!”, “Não sei sonhar senão a vida”, “Basta, PUM, basta!”...
É difícil sair da Roça Saudade como é difícil sair do Monte Café ou de qualquer aldeia de pescadores. É difícil porque os visitantes atraem sempre as crianças e as crianças aproveitam qualquer adulto disposto a dar-lhes atenção . Na Saudade, enquanto os miúdos mais pequenos quase ficam sem ar a andar à roda pela mão, Alfredo, de oito anos, entretém-se a desenhar caricaturas num caderno. No Monte Café, Eliseu, 12 anos e T-shirt esburacada com estrelinhas e corações brilhantes, trepa às árvores, e prepara ramos que são copos de folhas a embrulhar flores roxas que decide oferecer às meninas.
Leve-leve, agora no Príncipe
Visitar São Tomé também é voltar a ser criança. Basta querer. “Leve-leve” é a expressão que os são-tomenses usam a propósito de tudo e de nada. “Devagar-devagar”, é o espírito certo para esta viagem. Para a ilha principal, mas mais ainda para a obrigatória visita ao Príncipe, um paraíso ainda mais verde e selvagem, a 140 quilómetros de distância e onde se chega a bordo de um avião de 18 lugares, que em princípio voa diariamente mas que os ventos podem obrigar a ficar em terra.
Dos 136 quilómetros quadrados do Príncipe, 85 pertencem à rede mundial de Reservas da Biosfera da UNESCO. Até há bem pouco tempo, saía-se do Príncipe para ir à procura de trabalho em São Tomé. Agora, com os mais de 400 empregos já criados pela empresa HBD, do milionário sul-africano Mark Shuttleworth, já se começa a fazer o caminho inverso.
A HBD explora o hotel resort Bom Bom, na ponta norte da ilha. O hotel fica dentro da floresta tropical e é por isso que de noite, no telhado de um dos seus 19 bungalows, se podem ouvir macacos a passear. Tem duas praias desertas que se juntam no ilhéu onde fica o restaurante — é o ilhéu Bom Bom, que deu o nome ao resort, ligado à praia por uma ponte de madeira de 140 metros
A HBD tem muitos planos para o Príncipe, pelo menos mais dois hotéis de luxo, as obras para aumentar a pista do aeroporto e permitir que ali aterrem aviões de 60 lugares. Sempre “com um impacto mínimo no ecossistema”, garante o novo presidente do conselho de administração da empresa, o ex-oficial britânico Buster Howes. A empresa emprega biólogos, antropólogos e botânicos e promove projectos de reciclagem, e o Bom Bom foi o primeiro hotel em África certificado como Biosphere Responsible Tourism.
Quando se chega ao Bom Bom é difícil ter vontade de sair. Chove, mas mergulha-se em água morna. Para um lado é mar a perder de vista, para o outro a floresta mágica. Mas para conhecer o Príncipe é preciso resistir à preguiça e percorrer estradas duras que conduzem a comunidades quase isoladas na montanha, aldeias de pescadores e a capital, Santo António, onde vivem uns 1500 dos quase 8000 habitantes da ilha.
A comunidade da Praia Abade foi-nos sugerida como a mais simpática de toda a ilha e é fácil acreditar que assim seja. Lina, 34 anos e cinco filhos, e a amiga e vizinha Aldina, 26 anos, começam por meter conversa e acabam a pedir que lhes tiremos uma fotografia: “Assim, quando voltares consegues reconhecer-nos”. Dezenas de crianças brincam entre o mar e a areia, encostando-se às pirogas para comer uma fruta ou correndo de um lado para o outro. Chega um barco e traz um peixe-voador, presença frequente mas que não deixa de motivar um entusiasmo extra.
Lina já foi a São Tomé. “Se eu tivesse condições preferia viver lá. Tem mais coisas”, diz. Aldina nasceu no Gabão, filha de mãe nascida aqui mesmo, na Praia Abade, Ricardina, que morreu aos 47 anos, e de pai gabonês. Foi para São Tomé quando os pais se separaram e de lá veio para o Príncipe há pouco mais de um ano. “Em São Tomé, quem não tem terra, não tem de onde tirar. Aqui, já consigo ter de onde tirar. Já fiz casa, com uma sala e um quarto”, conta. Em São Tomé, o marido era pedreiro. “Aqui não há obras, mas ele habituou-se. Pesca, faz um bocado de carvão, faz candeeiros. Até grelha peixe, tem jeito. Faz de tudo um bocado.”
“Aqui, graças a Deus, todos são bem simpáticos. Todos os que vêm são bem recebidos. Criámos amizades e conseguimos encontrar um sítio para construir a nossa casa”, diz Aldina, sempre a sorrir. A “vida é boa”, mas ainda não deu para trazer os dois filhos que deixou em São Tomé com uma irmã. Para já, com ela só está Guerson, de ano e meio. “As crianças são felizes aqui. Andam pelo mato inteiro, são livres. E isto aqui é muito bonito.” É mesmo.
Anoitecer perfeito
Chegamos a Santo António já é noite. Na Tenda do Betinho, a dois quarteirões da praça da igreja a que os jovens chamam Ponto de Encontro, monta-se uma festa em menos de nada. Enquanto se espera pelas colunas que alguém vai buscar, joga-se matraquilhos e bebe-se Rosema, a cerveja nacional (20 mil dobras), que se vende em garrafas de vidro castanho sem rótulo, ou uma Super Bock (25 mil). Depois, o café transforma-se numa discoteca improvisada onde só não entra quem não quer. Os sons são os mesmos que põem os jovens de todo o país a dançar (63% da população tem menos de 24 anos), kizombas românticas de artistas angolanos ou moçambicanos.
Jamila, de 14 anos, aparece com uma grande caixa de plástico à cabeça e a amiga, Sofia, de oito anos, agarrada pelo braço. Na caixa vêm os pastéis de peixe picantes que a mãe faz e Jamila vende desde os seis anos. “Leva peixe e malagueta. É simples. Quando a minha mãe está doente eu também sei fazer”, diz Jamila, antes de Sofia pedir para lhe comprarmos um. Os pastéis são mesmo bons e o stock do dia acaba por ficar quase todo ali.
A festa não pode durar muito — só há electricidade na ilha graças a um gerador, que se desliga das 24h às 6h, e já houve festas que deixaram a ilha às escuras até chegar o barco que traz o combustível. De regresso à praça, há um grupo de homens mais velhos sentados num banco. Um toca viola, outra canta uma morna, é um concerto que era só deles e agora também é nosso. A viagem não pode acabar agora, é preciso voltar para São Tomé e apanhar o avião de regresso a casa, mas se pudéssemos ficávamos aqui mesmo. De olhos fechados a ouvir estas canções, com uma Rosema numa mão e um pastel da mãe da Jamila na outra.
GUIA PRÁTICO
Como ir
A TAP tem três voos semanais com escala em Acra, no Gana, e preços a partir dos 780 euros. Voar de São Tomé para o Príncipe custa cerca de 170 euros.
A agência Abreu tem pacotes para Janeiro e Março para São Tomé a partir de 777 euros com alojamento no Miramar Pestana, de 4 estrelas; e a partir de 872 no Pestana São Tomé, de 5 estrelas, sempre de oito dias/sete noites.
A Soltrópico oferece ao longo deste ano pacotes de três dias no Príncipe e quatro em São Tomé a partir de 1548 euros, com alojamento no Miramar Pestana e no Bom Bom Resort. Outra opção é passar a primeira e a última noite em São Tomé e cinco noites no Príncipe, a partir de 2086 euros e com três excursões incluídas (Descubra a Ilha do Príncipe, Roça Sundy e Praia Abade + Miradouro Nova Estrela). Para partidas entre 8 de Abril e 21 de Outubro, há um programa só para São Tomé a partir de 797 euros.
Onde dormir
No Pestana São Tomé, o único hotel de 5 estrelas da ilha, com praia e piscina privativas, os preços de Inverno começam nos 150 euros (reservas.stome@pestana.com; tel.: +239 222 4979), o mesmo valor a partir do qual é possível ficar no Omali Lodge Boutique Hotel, explorado, como o Bom Bom do Príncipe, pela HBD (reservations@omalilodge.com; tel.: +239 222 2479).
Ainda em São Tomé, o complexo turístico Clube Santana (reservas@clubsantana.com; tel.: + 239 224 2400), em Cantogalo, merece uma visita mesmo sem lá ficar. Ao domingo há um buffet onde se juntam turistas e famílias são-tomenses no paredão em cima da praia e diante do ilhéu Santana — a visita de barco conduzido pelo experiente senhor Adriano leva-nos até à gruta por baixo do próprio ilhéu.
No Bom Bom, as tarifas começam nos 260 euros (reservations@bombomprincipe.com; tel.: + 239 225 11 14).
Em São Tomé há turismo de habitação como a Casa Amarela e a Casa Vermelha, onde se paga 80 euros por noite por casa (quatro pessoas) e 40 euros por quarto (ciacnat@cstome.net; tel.: + 239 222 2573/239 9904492), ambas na cidade de São Tomé. Saindo do centro, uma opção são os oito quartos da Pousada Roça São João, com vista para a Baía de Santa Cruz, a partir de 40 euros (tel.: + 239 226 1140).
No Príncipe há pensões-residenciais como a Palhota a partir de 50 euros (tel.: +239 225 1060/239 225 1079) e na Santa Casa da Misericórdia pode ficar-se em dormitórios sem água quente por menos de 20 euros.
Comer e beber
Roça São João
No restaurante de João Carlos Silva, por baixo da pousada com o mesmo nome, os menus de degustação custam 15 euros sem bebidas.
Mionga
Literalmente na baía de Angolares, é propriedade de Nelito Pereira, antigo aluno de João Carlos Silva. Preços a partir dos 12 euros (tel.: + 239 226 1141/ 239 992 2316).
Dona Teté
Peixe do dia grelhado, saladas de búzio ou de polvo. Com bebidas e sobremesa, o jantar fica pelos 10 euros.
Omali Lodge
O restaurante deste hotel, onde o chef Tiago Velez reinventa com saber os ingredientes locais, merece uma visita.
Outros
No Bairro do Hospital, na capital, há tascas populares onde se serve peixe grelhado, vinho de palma ou cacharamba (aguardente de cana). Passeando pela marginal também se descobrem tascas onde beber cacharamba à luz de vela.
No bar Pico Mocambo, perto do Parlamento e do Estádio Nacional, a especialidade é o rum de todos os sabores (da maracujá ao café) num casa belíssima que já abrigou a PIDE.
No Príncipe, na Praia do Abade pode-se comer peixe frito com banana frita ali mesmo, na praia, e pagar o que se quiser. Vale a pena reservar uma refeição na Associação Cultural Rosa Pão, gerida pela Dona Rosita (rosapaoprincipe@gmail.com), onde não se paga mais de 8 euros. Na residencial Palhota ou no Complexo Mira Rio, junto ao rio que atravessa a capital, Santo António, servem-se refeições simples por 3 ou 4 euros.
O que fazer
Na capital de São Tomé vale a pena visitar os animados mercados do peixe, dos legumes e dos tecidos, o Forte de São Sebastião e o Centro CACAU (Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias), onde há exposições em permanência, sessões de cinema ao sábado à tarde e as portas se abrem duas vezes à noite — à terça agarra o microfone quem quiser cantar; à quinta há espectáculos de música e dança populares. O enorme espaço também tem uma loja de artesanato e está associado a uma escola de música.
Saindo da cidade, é só escolher: quem gostar de caminhadas tem muitos percursos à escolha no Parque Natural Obô — o pico mais alto é o de São Tomé, com 2024 metros de altitude. Para sul há praias deslumbrantes como a Jalé ou a Inhame; para norte, a lagoa Azul, uma praia sem areia mas com azul turquesa a compensar.
O que levar
Um passaporte com seis meses de validade é obrigatório, assim como repelente e dinheiro. Não há multibanco (há uma caixa, mas só para contas locais) e levantar dinheiro ao balcão pode ser impossível. A profilaxia da malária é aconselhada, apesar de esta estar quase erradicada; na consulta do viajante também se aconselham as vacinas da febre amarela e tifóide e da hepatite A.
A Fugas viajou a convite do operador turístico Soltrópico