Fugas - Viagens

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Marselha, do primeiro rap ao último tango

Cheiro a Magrebe

Mas regressemos ao bairro de Noailles, que “permanece autêntico com o passar do tempo” e não se entregou ao turismo da imediatez. Quem vende aquelas endívias e aqueles enchidos não são franceses bobo, mas o povo marselhês no seu espectro de diversidade, a cru. É por isso que, quando os sacos pesados começam a cortar a carne às mãos, o primeiro lugar que encontramos para repousar os pés é um hotel-café transformado em salão de chá magrebino.

“Um thé à la menthe, por favor.” O homem de vestes brancas acede ao pedido, voltando o corpo para uma panela que, pela dimensão, parece estar a apurar um banquete de chá para 300 pessoas. O copo vem cheio de açúcar e acompanhado de amêndoas caramelizadas. Não sabemos se os dias são amargos por aqui, mas se forem, estamos salvos. Há uma árvore que abana consistentemente em frente à esplanada, não muito distante da Porte d’Aix (o “arco do triunfo” marselhês) nem muito longe do McDonald’s, que certamente não usará cornichons (pepinos em conserva) do mercado de Noailles.

Vamos à geografia. Tunísia, Argélia e Marrocos surgem como as economias mais próximas da cidade portuária francesa desde que a Revolução Industrial atracou aqui. Com o fluxo de bens veio o fluxo de pessoas e hoje é tão certo comer um croissant ao pequeno-almoço como um cuscuz a meio da tarde, em qualquer lugar. “Não existe uma divisão cultural clara da comunidade em bairros”, descreve Laurianne. A imigração já deixou o movimento para trás e os estrangeiros fazem, há muito, parte da cidade, o que se sente na pronúncia e nos cheiros.

Mas se não há divisão cultural à vista, há bairrismo e vida de quartier – são 111 em toda a zona metropolitana, cada um com uma característica própria. La Joliette, com edifícios portentosos como a câmara municipal; Belle de Mai, onde nasceu, em 1992, a Friche (que significa “terreno baldio”), o lugar cultural erguido sobre os restos de uma fábrica de tabaco; Les Catalans, com a praia que já foi uma aldeia piscatória; Estaque, lugar de inspiração para Cézanne, Renoir ou Georges Braque; e por aí adiante. “Tudo o que está à volta de Notre Dame de la Garde [a impressionante basílica que, do topo da colina, parece estar sempre a zelar pelos caminhantes], por exemplo, é caro; é uma zona chique, bem no centro da cidade, com vista sobre o mar”, descreve a arquitecta. Mas mesmo ao lado da burguesia, os muros enchem-se de graffiti, há casas de kebab e lojas de telemóveis. Sobe-se um pouco e surgem as esplanadas agitadas do Cours Julien, com almoços a cinco euros. E, quando a noite cai, abrem-se as portas em ruído dos bares da Place Jean Jaurès. “C’est la folie (é a loucura).” 

Monsieur Charles

Uma maneira de condensar Marselha num lugar é fecharmo-nos na Cité Radieuse projectada por Charles-Édouard Jeanneret-Gris, o homem que conhecemos como Le Corbusier. É uma espécie de cidade vertical, montada nos anos de 1950 na forma de um bloco que intriga à passagem, por aquela fealdade bonita, de alguma forma a fazer lembrar o formalismo soviético.

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