Fugas - Viagens

Continuação: página 3 de 6

Marselha, do primeiro rap ao último tango

No interior do apartamento 643, percebemos que esta construção quis devolver a aprendizagem da vida social no pós-guerra. Por isso, os apartamentos são amplos (para a época), as vistas desafogadas a elogiar a paisagem marselhesa e, acima de tudo, os espaços comuns (mesmo os exteriores, como o terraço ou o jardim selvagem) são a projecção de um modelo de vida ideal. Os corredores são sempre largos e, no terraço (no nono andar), há uma piscina, uma zona de lazer, uma escola infantil e um bar. O terceiro piso é dedicado ao comércio e serviços, onde hoje funcionam um hotel-restaurante envidraçado, lojas de roupa, escritórios e ateliers. Até um minimercado abria as portas aos protagonistas do sonho vertical de Corbusier, porque a ideia era que “a sociedade pudesse funcionar toda num mesmo lugar, num lugar harmonioso”, explica Sara, a nossa guia. E, acima de tudo, “a casa deve ser o tesouro da vida”, ensina Corbusier.

Hoje, o edifício é obra obrigatória para os estudantes de arquitectura e está a aberto a visitas (sob marcação) nas tardes de terça-feira e sábado. Mas também vivem aqui famílias, por isso, cheira a cassoulet (a “feijoada francesa”) nos corredores e, igualmente por isso, sabemos que, aqui, nestes 337 apartamentos-laboratório, a vida acontece.

O último tango em Arles

Fechámos a porta ao apartamento que era Marselha para, após um tiro de comboio que se ondula pelo Mediterrâneo, encontrarmos Joseph. Estava para lá de bem-disposto na vernissage da exposição de Vincent M., de copo de vinho na mão direita, a trocar notas galãs com um apreciador das telas a óleo. Mesmo não o sendo, fazia-se o anfitrião da sala e, por isso, aproximou-se, de passo gingão, para questionar o nosso estado no mundo com um convite na manga: “Gostam de tango argentino?” Mesmo que não gostássemos, já estaríamos a seguir as calças vincadas de Joseph pelas ruelas empedradas e quase sempre pedonais de Arles, sob os candeeiros pós-impressionistas ao jeito de van Gogh, não fosse este o lugar onde o pintor criou alguns dos seus girassóis e cortou um pedaço da orelha direito.

Ao avançar para uma esquina no bairro da Roquette, a Igreja des Frères Prêcheurs surge na noite escura vestida de vermelho, com saltos agulha, decotes, camisas de seda e sapatos de verniz. Não há bancos de madeira corrida para rezar e o representante de Deus, neste caso, está no meio de nós. “Chamo-me Bruno”, assenta. Traz um crucifixo de madeira ao peito, porque é monge, mas no lugar do hábito veste calças de ganga e uma vontade enorme de assistir à reunião de amantes do tango. Música, maestro.  

Joseph de um lado, à procura da mulher sedutora que lhe roubou o juízo e o coração algumas noites atrás; Bruno, do outro, a olhar tudo em volta com a atenção de uma coruja. “Vêm aqui dos melhores dançarinos do mundo”, conta o nosso conhecedor anfitrião, enquanto ouvimos falar russo nas traseiras e espanhol junto à mesa dos salgados. Viajam à procura da sensação do tango, de encontrar “aquele momento em que o teu corpo se une ao de outra pessoa num movimento perfeito”.

--%>