Fugas - Viagens

Marselha, do primeiro rap ao último tango

Por Rute Barbedo (texto e fotos)

Há a Provença 1, dos campos de alfazema, aroma a sabão e vinho impressionista. E há a outra, que num eixo de 80km, entre Marselha e Arles, começa por ensinar o francês vindo do rap para mergulhar os olhos na fotografia e os ouvidos no tango.

Nos anos 1920, Walter Benjamin, o filósofo e ensaísta, exaltava o cheiro a urina, petróleo e peixe de Marselha. Andava a escrever sobre cidades e escolheu este pedaço onde o azul parece um pigmento colossal diluído no mar para experimentar a vida urbana complexa sob o efeito do haxixe (Sobre o Haxixe e Outras Drogas, 2010, Assírio & Alvim).

Por mais que o tempo passe sobre Marselha, a memória sobre narcóticos e alucinações, contrabando, máfias e todos os negócios negros que se podem cheirar neste porto romântico do Sul da Europa persiste, até porque continuam a chegar barcos. Tornou-se uma carga da cidade, mais presente do que todos os contentores vindos de África, porque Marselha não é um lugar transparente, inócuo. Alberga fugitivos e sonhadores, dá concertos (muito rap, rock e punk) improvisados nos passeios, vive de raiva e resistência. É a segunda maior cidade de França (e a mais antiga) e continua barata (no contexto do país); soube dizer “não” à gentrificação. “Não somos revolucionários; somos rebeldes”, atenta Laurianne Ginouvès, arquitecta freelancer, nascida em Montpellier e crescida no “planète Mars” (planeta Marte), como chamam os franceses à cidade insurrecta. E Laurianne tem razão.

Há dois anos, Marselha foi Capital Europeia da Cultura e isso alterou-lhe a fisionomia. Os investimentos na zona do Porto Velho fizeram nascer uma ampla zona pedestre junto ao mar. No seguimento do passeio, estão os 167 milhões de euros depositados no MuCEM – Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo, os 70 milhões na Villa Mediterranée e os 6,5 milhões para o restauro do Museu Regards de Provence. Quando os olhamos, não podemos negar que os arquitectos estiveram lindamente. A forma como a pedra se liga à água, as janelas alongadas e a vontade de seguir percursos dão bons minutos de contemplação.

Mesmo assim, Marselha continua a não competir (nem a chegar perto) com Paris a nível cultural. É por isso que, sempre que quer “ver qualquer coisa”, Laurianne abandona o vento forte de Marselha e embarca no TGV rumo à capital. Porque aqui as exposições deixam um sabor vazio na boca e, à saída de cada museu, a cidade volta a assumir o que é: um lugar onde a vida acontece na rua, nas esplanadas e escadórios, como insiste o sol.

Fora dos empreendimentos de milhões, Marselha foge do mar como uma montanha encalorada. As subidas são veementes, para atletas ou habitués. Mas os becos e ruelas fazem esquecer a inclinação, sobretudo quando a música chega à rua ou o peixe se grelha à porta a dizer-se fresco. Logo ali, a minutos do Porto Velho, chega Noailles, nome de mulher, ao som, o “ventre de Marselha”, em significado. Tomate, endívias, queijo daqui, dali, da outra montanha, da cabra 1, da ovelha 2, queijo de lamber os queixos, compotas de todas os tons de carmim, vinhos a condizer – os que mais pintam a boca, Côte du Rhone, e os rosé da vizinha Cassis – e, claro, o saucisson, a espécie de paio, de presunto, de salame, os pecados mortalíssimos pelos quais os franceses certamente renegariam até a beatificação. É o mercado diário do bairro (aberto de segunda a sábado, das 8h às 19h). Mas há pelo menos outras 28 feiras, de diferentes géneros e fregueses, na cidade, segundo a autarquia. Uma delas é o mercado dos antiquários, que funciona aos domingos, bobo (ou seja, burgeois – burguês – e bohème – boémio) para alguns, uma mina de tesouros para outros.

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