Fugas - Viagens

  • Humberto Lopes
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As boas memórias da feitoria portuguesa em Antuérpia

A prosa de More articulava as ideias de Adam Smith quanto à origem da força e da riqueza das nações com o esboço, já, dos contraditórios que iriam preencher os compêndios vindouros da nascente ciência económica. As tiradas do personagem português, se descreviam as idealizações de uma sociedade “utópica”, não rasuravam as distorções sociais e morais mais óbvias: “A principal causa da miséria pública reside no número excessivo de nobres, zangões ociosos que se nutrem do trabalho e do suor de outrem...”.

Não é indiferente o contexto em que a alegoria progride. O que Antuérpia e outras cidades da Flandres davam ao mundo, às nações europeias e às outras que com elas estabeleciam laços comerciais, era todo um novo sistema, muito mais aberto ao mundo e construído na base de extensas relações com ideias e geografias diferentes, natural sequência nos tempos renascentistas. Algumas reservas ficavam já lavradas nos argumentos esgrimidos pelos personagens; outras brotariam da incessante roda de ideias. Como as de Bakunine, que viria a sugerir, mais tarde, que “a concorrência não tem coração, não tem piedade (...). Nessa luta são necessariamente cometidos muitos crimes; toda essa luta fratricida não passa de um crime cometido contra a solidariedade humana, base de toda a moral”, asseverava o céptico anarquista.

Lição de cosmopolitismo

Das margens do rio Escalda às portas da Centraal Station, ao longo da Lange Nieuwstraat, da Korte Nieuwstraat, da Meir ou de muitas outras artérias que vão cruzando pequenas praças preenchidas por esplanadas cobertas por toldos e aquecidas nos dias mais frios, no Grote-Market e nas ruelas contíguas, os cenários são desenhados com a mais eloquente arquitectura flamenga.

Os bares com cerveja belga artesanal alternam com restaurantes de variadas bandeiras e paladares; logo à saída da Centraal Station, a uma dezena de metros, o icónico Bier Central, uma paragem inevitável, lista mais de trezentas marcas de cerveja, muitas de fabrico artesanal. E não há que andar muito para se dar com ementas gregas, chinesas, japonesas, eslavas, mexicanas, árabes ou portuguesas. Ou lojas e mercados multi ou transculturais onde os tecidos já são mais coisa dos Orientes do que flamengos, como era usual em séculos idos. E ruas de comércio indiano ou paquistanês (sobretudo as das nacht winkels, lojas abertas noite dentro), marroquino, turco...

Nada de insólito, bem vistos os factos; que grande cidade não afixa cenário equivalente? O complemento “natural” destes intermitentes bazares é a massa heterogénea de gente que caminha pelas ruas, cada caminheiro com as suas convicções, as suas (in) exactidões, as suas existências, os seus destinos, numa cidade que provou ao mundo que separar as águas com facilidades de passe de mágica só pode ser coisa de fantasmática página bíblica.

Se a prosperidade é coisa que nasce das trocas comerciais, o conhecimento viaja também nesse vaivém que é, também, de idas e voltas de seres humanos. Não dizia Braudel que com as mercadorias viajam ideias, hábitos, costumes, práticas, cultura, enfim? Olhemos as ruas de Antuérpia: podia o nosso Hitlodeu dizer o mesmo. E More, que nas suas passeatas pelo burgo flamengo terá visto já um tanto do que agora vemos, ao caminhar por estas ruas que cedo acolheram o cosmopolitismo das grandes cidades comerciais. Fechar hermeticamente fronteiras é coisa recente na longa história das sociedades humanas e esta cidade flamenga não se embaraçava, nem ninguém nela, com a variedade de gente que se cruzava no porto e no Grote-Markt.

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