Fugas - Viagens

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As boas memórias da feitoria portuguesa em Antuérpia

Por Humberto Lopes

Mesmo sem eloquentes sobrevivências patrimoniais de ordem material, a contribuição lusitana para a prosperidade de Antuérpia é bem reconhecida. Um passeio pela cidade flamenga, evocando um pouco da memória da presença portuguesa desde o início do século XVI.

Da Valónia à Flandres, segue-nos o mesmo cenário do outro lado da janela do comboio, o plat pays da canção de Brel. Planuras sem fim, manchas de arvoredo dispersas por verdes pradarias, aldeolas de casario térreo e telhados inclinados, os altos campanários das catedrais como singulares montanhas, canais perdidos em horizontes tocados por céus baixos e cinzentos. Voam pelos ares, ainda, restos de chuva do temporal da véspera; o vento começou a mudar de direcção de manhã e não é improvável que durante a tarde irrompam alguns fulgurantes raios de sol sobre as imagens douradas que coroam o Stadhuis (a Câmara Municipal) e as seiscentistas casas das velhas guildas de Antuérpia.

Vamos de Bruges a Anvers, a designação francófona da que foi uma das cidades mais prósperas da Europa nos séculos XVI e XVII. De uma a outra cidade viajou também, há quinhentos anos, o inglês Thomas More, no intervalo de uns afazeres oficiais que o levaram à Flandres. O dia de ócio acabou por providenciar o “encontro” em Antuérpia com o principal personagem do livro, um certo marinheiro e aventureiro português, de “tez trigueira” e “longa barba”, a condizer com a condição e no retrato instantâneo que surge numa das primeiras páginas do livro. O marítimo é apresentado a More mais como um sábio do que como um simples “patrão de navio”.

Este português, que seria a fonte de informação sobre a tão distante ilha de “bom governo” descrita na Utopia, trouxe das viagens um precioso património de experiências e saberes. “Navegou como Ulisses, e até mesmo como Platão. (...) conhece bastante bem o latim e domina o grego com perfeição. O estudo da filosofia ao qual se devotou exclusivamente, fê-lo cultivar a língua de Atenas de preferência à de Roma. E, por isso, sobre assuntos de alguma importância, só vos citará passagens de Séneca e de Cícero. Portugal é o seu país.” Rafael havia feito, enfim, a escolha entre ser Abel ou Caim, entre a liberdade e a propriedade com as amarras do sedentarismo: “Jovem ainda, abandonou seu cabedal aos irmãos; e, devorado pela paixão de correr mundo, amarrou-se à pessoa e à fortuna de Américo Vespúcio (…) durante as três das quatro últimas viagens, cuja narrativa se lê hoje em todo o mundo.”

More pormenoriza o local do encontro, a Catedral de Notre Dame. Imaginemo-los na companhia do flamengo Pieter Gillis, amigo comum, saindo de Notre Dame e passeando-se pela já então muito cosmopolita praça central de Antuérpia, o Grote-Markt, que em português soa muitíssimo bem tratando-se de uma cidade que ficou a dever a sua prosperidade ao comércio e que representava de forma notável um exemplo das sociedades mercantis em emergência na época.

O sonho de Adam Smith

A prosa que descreve esse encontro e a fantástica narrativa de Hitlodeu, a Utopia, foi inicialmente publicada em Louvain, em 1516, mas o lugar central de Antuérpia na sua génese tem sido, justificadamente, celebrado nesta cidade. Quanto à presença do protagonista português, ela está longe de ser um acaso: Portugal jogava então um papel preponderante na construção da economia-mundo com o seu comércio de especiarias, e o autor tinha certamente na bagagem a leitura de narrativas das navegações que largavam do Tejo.

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