Ocultos sinais lusitanos
Indagamos, ao passo ziguezagueante de um roteiro traçado na zona mais antiga, os signos e as histórias de gente portuguesa que por ali andou fazendo História e deixando nome. E ao calcorrear itinerários no centro histórico descobrimos biografias que revelam esplendor e tragédia, narrativas que são também um pouco do que conta como registo histórico do Portugal que não se quedou dentro das suas fronteiras — como, aliás, tantos outros povos cuja identidade dificilmente se pode confinar ao que se costuma designar por raízes.
Como tão exemplarmente resumiu Juan Goytisolo (que escolheu Marraquexe para pátria) a propósito dos fenómenos migratórios, “o homem não é uma árvore: carece de raízes, tem pés, caminha”. “Desde os tempos do homo erectus circula em busca de pastos, de climas mais benignos, de lugares onde possa resguardar-se das inclemências do tempo e da brutalidade dos seus semelhantes.” Como estranhar, ou esquecer, pois, que foi da Europa que partiu uma das maiores vagas de emigração do século XX? Mais de sessenta milhões de emigrantes europeus puderam rumar livremente para África e para as Américas...
Uma boa parte das residências dos mercadores, dos lapidadores de pedras preciosas e de um ou outro banqueiro luso, situava-se numa zona delimitada pela Lange Nieuwsraat, pelo Meir e pela Gasthuisstraat. A feitoria, transferida de Bruges logo no início do século XVI, e também conhecida por Casa de Portugal, tinha assento na Kipdorp.
O edifício já não existe, mas é ali que podemos ver uma reminiscência arquitectónica da Casa de Portugal, um tecto abobado no que é actualmente um quartel de bombeiros. Na entrada principal, uma placa comemorativa, em flamengo e em português, assinala a relevância histórica do lugar: “Aqui foi durante três séculos a Casa de Portugal que o rei Dom Manuel I mandou fundar em 1511 para expansão do comércio português.” Na monumental escadaria do Stadhuis, uma grande pintura mural mostra uma cena da inauguração da Bolsa, em 1532; algumas das figuras que rodeiam os altos magistrados da cidade são representantes da comunidade portuguesa.
Ali perto, na confluência da Markgravestraat com a Lange Nieuwstraat (onde havia também estabelecimentos portugueses de lapidação e comércio de pedras preciosas), vemos uma capela gótica de finais do século XV. Fez parte de um palácio lusitano, o Immerseel, propriedade do cônsul Rui Fernandes de Almada. O palácio desapareceu, entretanto, e é na Chapelle de Borgogne que sobrevivem alguns motivos pictóricos evocativos da presença portuguesa, entre os quais um brasão de Portugal.
Um pouco mais adiante, ainda na Lange Nieuwstraat, entramos no maior templo de Antuérpia, a igreja de Santiago (ou Sint-Jacobskerk, em flamengo), histórica etapa na peregrinação a Compostela. O edifício, em gótico flamejante, e beneficiário do mecenato de Diogo Duarte, comerciante de pedras preciosas descendente de um cristão-novo escapado da Inquisição, alberga no interior, entre outros, o túmulo de Rubens e ostenta uma obra prodigiosa em mármore que inclui mais de uma vintena de altares. Há brasões lusitanos à vista, o túmulo de Diogo Duarte e, uma vez mais, uma história que as reminiscências materiais deste itinerário não contam por inteiro: o português ficou conhecido também como um grande coleccionador de arte, deixando um espólio de quase duas centenas de obras, incluindo pintura com as assinaturas de Bruegel, Durer, Van Dick, Rafael, Tintoretto e Ticiano.