Lodovico Guicciardini, ilustre mercador florentino da Flandres, pôde escrever que “em nenhum lugar do mundo os estrangeiros são tão senhores dos seus actos e gestos como em Antuérpia (...). Resulta desse facto que vive aqui uma mistura de pessoas de todas as nacionalidades e que se ouve falar em Antuérpia um grande número de línguas diversas”. E acrescentou uma observação, algo hiperbólica, que relativiza as nossas contemporâneas “descobertas” da multiculturalidade e as iluminadas elucubrações multiculturalistas da intelectualidade orgânica. “As viagens para lugares distantes são completamente supérfluas para quem quiser estudar ou imitar os usos e os costumes de um ou outro povo: encontra-os aqui todos reunidos nesta cidade.”
O exemplo percorria as margens do Mediterrâneo e de outros mares e terras, disso nos lembram as páginas de Amin Malouf ou os juncos chineses que o conquistador Albuquerque encontrou em abundância carregando mercadorias em Malaca. Ou as cosmopolitas urbes da Rota da Seda, de Kasghar a Pequim, ou, até, o encontro do Gama em Calecute com dois muçulmanos tunisinos que falavam castelhano e genovês...
Do Oriente para Antuérpia
As circunstâncias político-religiosas pesaram, assegurando aos seus habitantes “essa imunidade religiosa e intelectual que faz a sua glória e prosperidade”, lemos numa evocação desses tempos, um volume publicado pela extinta Livraria Orfeu, de Bruxelas (Portugal & Antwerpen - 1498-1648, de Anne Quartaet e Frederic Wille), que mantém, todavia, a sua componente editorial e as suas edições acessíveis aos leitores no espaço da Lusoloja, na Chaussée de Louvain, na capital belga.
Aos fundamentalismos nacionalistas anti cosmopolitas, o argumento da imunidade intelectual e religiosa, e a virtude que supõe, deve gerar um certo desconforto: “A cidade consegue permanecer na perspectiva espiritual o que era na perspectiva comercial e económica, um oásis de liberdade, quase de anarquia, apesar de um período difícil de um ponto de vista político”, escrevem os autores do livro. Muitos dos insignes portugueses da história de Antuérpia eram judeus ou cristãos novos que foram obrigados a abandonar Portugal, perseguidos e em risco de acabar nas fogueiras da Inquisição.
Ao passearmos pela Lange Nieuwstraat, pela Kipdorp e pelo Meir, em trechos da cidade que acolheram mansões de portugueses, é justo recordar que a acção e o celebrado engenho dos lusitanos que viviam na Flandres representaram notáveis contribuições para a prosperidade da cidade flamenga — tanto através do comércio de especiarias como da actividade de lapidação de diamantes e pedras preciosas. Jacques Attali nomeava as cidades europeias que mais beneficiaram do comércio com as Índias (orientais e ocidentais): Antuérpia e Sevilha.
A experiência de Guicciardini reforça essa ideia: “O crescimento mais notório que tornou esta cidade tão famosa e rica começou por volta de 1503 e 1504, no momento em que os portugueses começaram a trazer especiarias e drogas das Índias para Portugal e daí para as feiras desta cidade.” Com os seus armazéns a abarrotar de pimenta, cravinho, gengibre, noz-moscada, Antuérpia chegou a ser o maior depósito de especiarias da Europa e respondia por um quarto das receitas da nossa Casa da Índia. Pouco mais tarde, seria o açúcar, mercadoria embarcada na Madeira e em São Tomé, outro importante motor da economia antuerpiana. Na Suikerrui, hoje uma rua pedonal entre a Notre Dame e as margens do Escalda, haveria uns quatro importadores portugueses que forneciam aquela matéria-prima aos refinadores locais.