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Era uma vez na Arménia

Por Sousa Ribeiro

A proximidade do Natal é apenas um pretexto para viajar pela primeira nação a adoptar o cristianismo como religião oficial, um país vítima da História mas com uma herança cultural e tão hospitaleiro que difícil mesmo é resistir aos seus segredos por muito mais tempo.

-Ierevan?

Deixo-me conduzir até ao carro onde o motorista, afundado no banco e com um boné que lhe cobre parte do rosto, tem um despertar agitado quando ouve o som produzido pelos nós dos dedos tamborilando no vidro.

O sol, ainda baixo, despontava no horizonte, lançando os seus raios pontiagudos.

Abro a porta e acomodo-me, sem que o homem sentado ao volante se digne a fitar-me ou mesmo a dar-me os bons dias. Sou o único passageiro com destino à capital da Arménia.

- O carro está com um problema, temos de ir devagar - diz-me, finalmente, quando Tbilisi começa a ficar para trás e os campos, como uma manta de retalhos de verde e amarelo, vão emoldurando a janela, enquanto no interior se eterniza um silêncio que parece incomodar-me mais a mim do que a ele.

Na fronteira, depois de carimbado o passaporte, junto-me ao motorista que me espera já em território arménio, sorrindo-me enquanto troca os cartões do telemóvel.

- Tudo bem? Algum problema?

A mudança de humor é notória. Uns minutos mais tarde, detém-se, numa estação de serviço, no sopé de uma colina dominada por uma igreja.

- O gás é mais barato na Arménia, elucida-me, como se de repente se arrependesse da sua antipatia inicial e tudo, qualquer gesto ou situação, carecesse de uma explicação.

- Anda. Vamos tomar um café.

Em momento algum me perguntou o nome e eu, talvez influenciado pela primeira imagem que ele produzira em mim, também calei a minha curiosidade. Já no interior da viatura, ofereceu-me uma lata de refrigerante que acabara de comprar.

- Gosto muito de Coca-Cola. E de mulheres ucranianas. E tu?

O carro retomou a marcha; ao fundo, recortava-se um lago com as suas águas paradas, de um verde escuro, e para trás, perdendo-se no horizonte, montanhas com linhas bem definidas.

O trânsito é praticamente inexistente, evitando a proximidade ao Azerbaijão, com quem a Arménia está de relações cortadas.

De repente, como quem sai de um longo período de hibernação, começa a relatar-me episódios do seu passado, enquanto relanceia a paisagem e por vezes quase ignora a estrada que vai serpenteando, sempre a descer, por um cenário belo e silente. Como quem adivinha um certo receio da minha parte, enaltece as suas qualidades ao volante:

- Antes, o melhor era o Michael Schumacher. Agora sou eu, garante, ao mesmo tempo que se serve do retrovisor para dar um ligeiro toque no boné. 

Regressa ao mutismo e, uns quilómetros mais à frente, a sua expressão torna-se séria, envolta numa bruma de melancolia, como um céu azul que subitamente se cobre de nuvens cinzentas.

- Este país é cada vez mais pequeno. Porquê?

Como não obtém resposta, perscruta de novo o cenário, como se nele estivesse escrita a história da Arménia, e dá início a um relato manchado de sangue, recordando a tragédia arménia ao longo do século passado e evocando, com mais detalhe, provavelmente por estar tão clara como a água na sua memória, a experiência dramática e pessoal do conflito com o Azerbaijão. Uma lágrima desponta quando recorda o amigo que, conduzindo um carro armadilhado, se fez explodir contra um tanque inimigo, outras vão tombando pelo rosto e a voz embarga-se-lhe no momento em que lembra a sua existência como comandante de uma brigada de 120 homens durante esse período turbulento que se prolongou por seis anos (entre 1989 e 1994), provocando a morte de 25 mil azeris e cinco mil arménios em luta pela posse da região de Nagorno-Karabakh – no rescaldo da II Guerra Mundial, foi atribuída pela URSS ao Azerbaijão mas os habitantes, pouco mais de 130 mil, não abdicam da sua identidade arménia, posta em causa quando uma declaração unilateral, embora sem reconhecimento internacional, transformou o enclave num estado independente.

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