Da varanda, continuo a assistir ao desfile, uma vez ou outra lanço um olhar na direcção de Jose Pizaro Júnior, percebo a sua indiferença quando uma cópia fiel de Michael Jackson se aproxima e a sua excitação quando um grupo com pretensões a dálmatas se movimenta ao lado dele. O sol castiga tudo e todos, o suor escorre pelos rostos negros dos figurantes mas ninguém, a não ser os mais pequenos, denota qualquer preocupação — o ritmo continua forte, as cores multiplicam-se, as danças eternizam-se. À minha frente, projecta-se a catedral paroquial de São João Baptista, o centro da fé dos kalibonhons e inaugurada em 1581 mas ampliada e restaurada ao longo dos anos (a última das quais na última década do século passado, devido ao terramoto que abalou Kalibo em 1991) para acolher com dignidade Santo Niño. Bem próximo, outro edifício histórico, o antigo tribunal, cujo interior é agora ocupado pela sede da polícia, pela biblioteca municipal e pela fundação Kalibo St. Niño Ati-Athian (KASAFI) que todos os anos organiza as festividades.
A meio da tarde, deixo para trás Kalibo, na companhia de Melinda Augustin e de Jose Pizaro Júnior. A festa, pelo menos para alguns, só agora começa e entre muitos milhares estará, dançando até que o sol se levante de novo, Sheaea Julian, vivendo o Ati-Athian e revivendo memórias.
Toto adormece ao fim de alguns minutos, no autocarro, com a cabeça deitada nas pernas de Melinda Augustin. Por momentos parece sorrir. Também ele carrega uma memória. Ou um sonho feliz.
Com o menino de barco
Naquela manhã, ainda nas trevas, vestira-me à pressa, com a sensação de que estava atrasado para o encontro com Melinda Augustin — e estava mesmo. Ainda ensonado, caminhei pelo meio das poças de água que se acumularam na véspera e fiz sinal a um triciclo para me levar até à igreja de onde provavelmente já saíra o ícone de Santo Niño para a procissão anual. Ao dobrar a última esquina, um som estridente chegou-me aos ouvidos e avistei, vindo na minha direcção, uma carrinha de caixa aberta carregando a imagem do Menino Jesus e umas colunas que ofereciam música num volume que ameaçava acordar toda a ilha ainda antes do sol se levantar. Fiz sinal ao motorista e este, sorridente, mandou-me subir para o lado dele — a espontaneidade parecia-me, mais do que nunca, melhor do que qualquer planificação durante umas férias. De Melinda Augustin não havia sinal mas eu tinha a certeza de que ela assistira às celebrações religiosas que antecedem a saída do menino da igreja. De quando em vez olhava através da janela nas minhas costas e via dois homens atarefados, dividindo-se entre a necessidade de manter o Santo Niño em perfeito equilíbrio e de afastar os fios eléctricos que, como teias de aranha, ligavam as casas que bordejavam a estrada. O povo saía para a rua, acenando à passagem da estátua, e eram cada vez mais as motorizadas e um carro ou outro que seguiam a carrinha conduzida com mil cuidados.
O último troço, aos saltos, foi o mais difícil mas, de repente, após um trilho em terra batida, o mar abria-se à nossa frente, pequenas luzes nas águas, o céu manchando-se, lentamente, de cores rosadas. Santo Niño foi então levado, numa manobra complicada, por alguns homens desde a viatura até uma embarcação e depois foi a minha vez de entrar, imitando um grupo de mulheres e o padre — era o único turista a acompanhar a figura tão venerada pelos filipinos num trajecto que nos iria levar por mar de volta à igreja.