Fugas - Viagens

  • Humberto Lopes
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Parque Kruger: a arca de Noé

Mesmo com abundância das águas estivais, os rios, as barragens, os charcos são sempre ponto de encontro dos bichos — as primeiras horas da matina e o final do dia são os momentos mais favoráveis para o visitante arriscar a sorte. Com os primeiros sinais da alvorada, por volta das cinco, parte-se para os safaris matinais. Uma brisa húmida e fresca espalha os cheiros da vegetação e da terra, molhada ainda pelo temporal da véspera. Ervas, ramadas baixas e arbustácea densa são camuflagem da bicharada, um puzzle ao contrário, que é necessário escrutinar e desconjuntar: às vezes por detrás de um tronco, de um emaranhado de arbustos, esconde-se um leopardo, um rinoceronte, um antílope, uma serpente — ou, mesmo, duas ou três chitas, que são dos mais esquivos bichos que povoam a região.

E vamos por esta imensa arca de Noé a céu aberto, as imagens correm diante da sede dos olhos, como se virgens os dias, ou como se no início dos tempos e próximas desse mistério. Bem pode ter sido em paragens africanas que a barca dos bichos ancorou depois de retiradas as águas do dilúvio. Eis as zebras: uma anda aos saltos entre a relva, talvez assustada por um réptil, outras pastam tenra erva, sempre mostrando o flanco ao intruso, ao viajante metediço, não vá ser necessário dar uso aos cascos. Além, um rinoceronte branco passeia com a cria, ligeiramente atrás; uma dúzia de hipopótamos banha-se numa lagoa e alguns, galhofeiros, lançam ao ar jactos de água enquanto outros deslizam submersos, só com o cocuruto e os olhos à tona; na margem uma tropa de crocodilos estica-se ao sol, estão imóveis como troncos de árvores, absortos, como se ali estivessem há séculos e nada os pudesse apoquentar nos milénios que há por vir; noutro lago, à beira de uma picada, sete leoas sonolentas vigiam as crias — a mais atrevidota vem à picada espreitar, intrigada, a geringonça mecânica recém-chegada.

Ao fim de meia hora a rolar aos solavancos por um atalho enlameado, quase sem sinal de vida, voltamos ao asfalto e damos com alguns elefantes à sombra de uma grande árvore, quase a dormir em pé, às vezes balouçando levemente, os leques das orelhas em abanos de refrescar ou de sacudir a impertinência dos insectos. Atraem três jipes e respectivas tripulações, que estacionam no meio da estrada, a uns trinta metros; um dos paquidermes vem caminhando e mordiscando, distraído, frescas ramagens: de súbito, sem mais aquelas, lança-se a correr aos urros com as grandes orelhas a abanar e investe sobre os mirones. Assunto de territórios e de imprudência: estávamos plantados na rota do bicho. Pé no acelerador e escapamos. Está sempre a acontecer.

Bichos e mais bichos antes do dilúvio do dia

À tarde, ainda com o sol no pino, uma fila de elefantes atravessa um rio, as crias caminham entre as mastodônticas figuras das progenitoras. Mais adiante voejam abutres em círculo no ar. Vemo-los à distância e em breve se esclarece o enredo: uma carcaça de antílope é esventrada por um bando de hienas e a pouca distância as aves de rapina esperam pacientemente a sua vez.

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