Bem, confiemos que não há assunto mais importante que o do(s) princípio(s) das coisas. Ou do(s) seu(s) recomeço(s). O que adiante vai citado está escrito no Génesis. E será certamente símbolo de algo relevante, já que esta história do dilúvio universal anda escrita em vários livros, com variada caligrafia, variada linguagem, variada tinta e intenção. “De tudo o que vive, de toda a carne, dois de cada espécie farás entrar na arca, para os conservares vivos contigo; macho e fêmea serão. Das aves segundo as suas espécies, do gado segundo as suas espécies, de todo o réptil da Terra segundo as suas espécies, dois de cada espécie virão a ti, para os conservares em vida”. Isto falou Deus a Noé, dizem.
Chegamos às portas do Kruger com esta ideia, esta representação, esta imagem, que é também de exaltação da diversidade das formas de vida. E o tempo é este, o do Verão austral, dos excessos, das intemperanças, das grandes águas vertidas sobre a terra. Dos sentidos despertados de súbito a meio da noite por um aguaceiro torrencial. E a arca onde está? Está lá fora, a imensa arca com os inumeráveis bichos da Criação. Mas o sonho é surrealista, chove dentro da arca, o tempo parado ou às avessas, Noé conta ainda os casais, dois ou sete de cada espécie... e não tarda que o sonho seja menos do que um farrapo de nuvem desfeito pela madrugadora luz africana. Num instante somos parte de um amanhecer límpido, com um sol alaranjado a crescer depressa no horizonte e a bicharada a acordar também para o dia.
Toda a natureza desperta após os meses de estiagem. O capim está alto, as acácias, todas as suas várias famílias, as fever trees e as suas temíveis colónias de mosquitos, os canhoeiros, os matos, as micaias, os embondeiros, tudo ressuscita do cíclico purgatório da seca. “Nada poderá fazer voltar a hora do esplendor na relva, da glória na flor”, como no poema lido por Nathalie Wood numa famosa cena de Esplendor na Relva? Os versos de Wordsworth não contam toda a história: a glória na flor voltará mil vezes, e ainda outras mil, porque para a ressurreição da natureza é preciso o sacrifício individual, os ciclos, os abismos e os retornos. O sol nasce e põe-se todos os dias, o vento gira e sopra e pára de soprar e volta a girar. A flor é um brevíssimo momento cintilante, os frutos amadurecem, as folhas fenecem, caem e fundem-se no húmus da terra. O abutre não tem, afinal, menos nobreza que a ovelha: não há moral na natureza. E o caminho da morte não é outra coisa senão o caminho da vida. É o que nos diz este jardim de Noé austral nesta época, neste pedaço escaldante do calendário.
Leoas sonolentas e um elefante em fúria
Trópico de Capricórnio, trópico de Verão. É o tempo da morula, a fruta que embriaga os elefantes. Toda a natureza parece embriagada. Os céus de cobalto, as cargas eléctricas esticando a corda até ao limite, para lá do limite, nas entranhas das nuvens escuras, as trovoadas que culminam dias abrasadores, o sol a latejar, a promessa de rios transbordantes e de fertilidade na súbita tormenta que tomba sobre a savana ao fim da tarde. Ah!, Brassens e os versos cantados em L’orage, esses versos que disparam sobre o bom tempo e sobre “os países imbecis onde nunca chove”. Não, aqui não se corre o risco da monotonia turística do bom tempo. Júpiter e São Pedro, cúmplices.