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É Carnaval, o bacalhau não leva a mal

Por Sousa Ribeiro

Granville, na Normandia, viveu durante séculos da pesca na Terra Nova e tem hoje para com os pescadores uma dívida de gratidão. Na Terça-Feira Gorda, estes homens corajosos viviam um ambiente festivo sem saberem que estavam a contribuir para preservar um evento que é um dos mais alternativos da Europa e Património da UNESCO.

Há muitos, muitos anos, já com os barcos prontos para partirem para a pesca do bacalhau na distante Terra Nova, no Canadá, a festa da Terça-Feira Gorda era o acontecimento que marcava a despedida dos pescadores de Granville antes de largarem amarras e sulcarem, carregados de memórias felizes e incertezas, as águas de mares mal-humorados — bem que poderia ser sempre a última celebração. A pesca foi, entre o século XV e o século XX, a actividade mais rentável em Granville, chegando a totalizar mais de uma centena de embarcações e quatro mil homens em 1786, o que representava dois terços da frota francesa. 

Aquele que é um dos carnavais mais alternativos da Europa, que parece existir desde que o mundo é mundo, tem, de facto, uma dívida de gratidão para com esses homens corajosos que, obrigados a longos meses de separação das suas famílias, enfrentavam tempestades e um trabalho árduo. Sem eles e sem a amplitude que deram aos festejos, muito dificilmente o Carnaval de Granville teria sobrevivido à marcha inexorável do tempo, aos séculos XIX e XX — em França, menos de duas dezenas chegaram ao século XXI.

Com a tradição a cair em desuso, o Carnaval, cuja fórmula actual remonta a 1870, não tem rival à altura no Oeste do país; no Noroeste existem outros dois com uma longa história também associada aos pescadores, o de Dunquerque, no departamento do Nord, e o de Douarnenez, no de Finistère, mas nenhum deles com a excelência, com a força, com a paixão e com a identidade que caracteriza o de Granville. Basta olhar para os números (ou estar na cidade nas semanas que são já um prenúncio do arrebatamento) para se perceber a verdadeira dimensão da festa e como absorve tempo aos seus habitantes: três centenas de construtores de carros alegóricos, mais de dois mil foliões, cerca de 130 mil visitantes em cinco dias, fanfarras e orquestras, sete toneladas de confetis, quilómetros e quilómetros de serpentinas.

Antonina Julienne tinha dois anos quando participou pela primeira vez no Carnaval; com seis desfilou com os pais num carro alegórico e não falhou uma única edição até que, já com 15 anos, passou a desempenhar um papel mais activo na preparação dos festejos carnavalescos que a conduziu, em 2016, à presidência do comité de organização.

- Para mim, é uma festa que partilho com a família e os amigos, se bem que se possa falar de um laço muito forte e particular entre todos os foliões, que se reconhecem e se respeitam, independentemente do meio de onde vêm. Em Granville, no Carnaval, não há classes sociais, todos pertencem à mesma comunidade.

O testemunho

Revelando, de há uns anos a esta parte, um grande empenho em preservar as tradições desta festa pagã, a organização do evento sentiu a necessidade premente de, em colaboração com as escolas, transmitir aos mais jovens esses valores tão enraizados na cultura de Granville. Desta forma, os estabelecimentos de ensino da cidade e mesmo de toda a região em que está inserida têm nos dias de hoje um papel bem mais activo na materialização do Carnaval, um empreendedorismo que se estende à presença de um número considerável de alunos nos concursos anuais de fabrico de máscaras ou até na participação, mais visível e mais mediática, nas manifestações culturais que marcam o dia da inauguração musical dos festejos, bem como na teatralização do julgamento do rei do Carnaval. Ao mesmo tempo, e ao longo do ano, perto de duas mil crianças das escolas e jardins de infância da bacia de Granville têm, dentro desta política de promover aquele que é o acontecimento mais singular da cidade normanda, a oportunidade de visitar as oficinas de construção de carros carnavalescos.

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