Como em quase todas as cidades africanas, há um ritmo cujo pulso se toma nos mercados. Lá para as bandas do Bandim, o maior mercado de rua da Guiné, há um pouco de tudo vindo de toda a parte e gentes de variada origem, todas em azáfamas de cuidar da vida. Panos muito coloridos e solares — que as tonalidades garridas da África Ocidental têm muito que se lhes diga — e toda a sorte de mercadoria, roupas, coisas electrónicas na moda, prestáveis electrodomésticos, ferramentas, legumes e frutas, etc., com que se há-de ir fazendo a vida de vendedores e fregueses. Ao coração da Baixa aportará amiúde qualquer viajante que se quede uns dias na cidade. O mercado provisório (há anos e anos) é o lugar das frutas, dos legumes, de tubérculos e afins, mercancia quase amalgamada com telemóveis e outras imprescindíveis e utilíssimas pós-modernices. E é lugar de sociabilidades, de trocas de gentilezas e — nenhuma admiração — de duras negociações para comprar seja lá o que for. Des affaires, mon ami, des affaires, a vizinhança é francófona, a moeda é o franco CFA, usado em vários países da África Ocidental. O linguarejar, esse, é o crioulo de base portuguesa, a língua franca falada por menos de metade da população de um país que tem para cima de uma vintena de línguas e o milagre de uma identidade (mais ou menos) nacional, planeada sobre um espantoso mosaico cultural. Logo o viajante aprende a fala conveniente para estas andanças de regateio: pedir desconto faz parte do script das interacções em qualquer mercado. Pois então, à vista de umas tentadoras mangas de faces rosadas: Ka pudi fassi batimento?
Canchungo, city life
De candonga — o “chapa” guineense” — se vai a toda a parte. Ou de sept-places — heróicas carrinhas Peugeot 504 dos anos 1960. As florestas do Sul e as savanas do Leste onde o Sahel vem expirar requerem mais robusto transporte, mas para jornadas até às bandas de Bafatá e de Gabu, no Leste, ou para Norte, Canchungo, Cacheu, São Domingos ou Varela, a sept-places e a candonga saem-se bem e recomendam-se.
Vamos de sept-places para norte, com bolanhas à vista, aqui e ali entremeadas de embondeiros, assomando entre nevoeiros matinais. A carripana vai cheia, mas ainda entra um cesto de hortaliça. E risos. Ka tem problema! Canchungo fica no caminho de Cacheu, depois da encruzilhada de Bula, um desses muitos locais da Guiné — Mansoa, Safim, Bambadinca — onde a população trata da vida junto à estrada, à espera de fechar negócio com os passageiros das candongas e dos sept-places.
Ultrapassado velozmente um velho autocarro com as letras “STCP” pintadas sobre a chaparia azul e branca, doação lusitana, estamos às portas do que sobrevive de uma antiga vila administrativa dos tempos coloniais. À entrada nos apeamos, numa praça circular que faz de terminal.
O sítio é sumário, mas com sinais de ter sido um interessante povoado colonial, meia dúzia de ruas numa malha de linhas perpendiculares, com uma artéria inequivocamente principal e inspiradora de um bom documentário — estamos ainda na fase das repérages, chamemos-lhe para já City Life, não é original mas vai direito ao assunto. Muito mais avenida do que rua, é o eixo que atravessa o aglomerado de casas coloniais e é uma espécie de ágora grega cheia de vida e conversa, uma quinta avenida com tudo lá concentrado, negócios, comércio, diversão, um antigo cinema a brilhar como ruína arqueológica, vacas a circular livremente como se estivessem na Índia, carcaças de automóveis e tractores abandonados, cobertos de uma triste mistura de poeira e ferrugem, uma igreja com painéis de azulejaria lusitana. Gente a andar para lá e para cá. Um alarido de crianças a sair da escola, todas de bata, de bicicleta ou a pé e, lá no fundo, na cabeceira da rua, um covil militar. Apêndice da descrição: logo adiante, a caminho de um braço de ria, uma pedreira e uns tantos miúdos com idade de andar na escola, vestidos de farrapos, a partir pedra debaixo de sol.