Fugas - Viagens

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Um país que não cabe no mapa

Por Humberto Lopes

De Bissau a Cacheu e ao seu labirinto de tarrafes, de Mansoa a Bafatá e a Gabu, terra de um antigo reino mandinga, de Bambadinca a Buba e ao seu vasto rio, de Quebo a Jemberem, no coração das grandes florestas do sul, de Bolama a Bubaque, no paraíso dos Bijagós. Uma viagem por um país que os mapas não explicam.

E pur si muove. Não podia imaginar o pobre Galileu, na sua abjuração do movimento translacional da Terra, perante a douta Inquisição, que o seu murmúrio seria no futuro citado milhões de vezes e com tão variados pretextos. Façamo-lo então, agora, à conta de um estranho país improvável, a Guiné-Bissau.

Sim, e pur si muove. E no entanto, ela move-se. E no entanto, o improvável tem às vezes mais força do que o previsível, como um cometa inesperado cruzando os céus e alarmando os mortais absortos nas suas tristes, sedentárias rotinas. Improvável como as paixões que ferem os destinos para sempre: assim é a Guiné-Bissau, país que quase inexiste mas é tão real que se mete pelo coração como se fosse, desde o primeiro encontro, uma memória perdida que regressa a casa.

É um território singular e diverso, apesar do tamanho: o litoral recortado como um grande delta, a destoar naquele pedaço da costa africana, de linhas mais a prumo, a imensidão de etnias (fulas, bijagós, mandingas, balantas, manjacos, fulas, etc.) e línguas e culturas, a variedade de ecossistemas e paisagens, os parques, a fauna e a flora, a espontânea afabilidade das gentes, que é como uma morabeza continental. Tudo isto e o mais que é tanto que não cabe em palavras são as qualidades guineenses que podem atrair os viajantes, não apenas os turistas, os que estenderão preguiças nos areais dourados dos Bijagós ou de Varela, os que acorrerão em grupo aos parques naturais, às florestas ou às margens dos grandes rios, às bancas de artesanato, mas também os solitários sem rumo, de norte perdido por vontade própria, com uma mão cheia de nada e outra a abarrotar de equívocos e desenganos. Viajar é também isso, calcorrear veredas que não levam a lado algum porque fica sempre caminho por andar no dia seguinte, viajar talvez seja simplesmente acolher de mãos bem abertas o que sobrevém, nem sempre imprevisível ou improvável, no solar intervalo dos sonos, os encontros e as falas com que são preenchidos os dias e as noites, as paisagens mutantes, os nevoeiros do amanhecer nas bolanhas e nas florestas, os rios, os grandes rios da Guiné e as suas vastíssimas águas.

Ka pudi fassi batimento?

A Bissau se chega, de Bissau se parte — aí se encontra o único aeroporto internacional do país. Aí, também, as primeiras rugas de um tempo antigo que por lá ficou: Bissau Velho, um brevíssimo e visitável núcleo de casario colonial, ruelas, casas de dois pisos com varandas, arquitectura modesta a confirmar a falta de entusiasmo do ex-colonizador. Talvez intuísse, secretamente, que estava de passagem: é genericamente urbanismo minimal, abreviado. Da ideologia ficou coisa mais vistosa, uma Maria da Fonte robusta que nem camponesa minhota ou soviética operária, firmada bizarramente no centro da Praça dos Heróis. E a fortaleza de São José de Amura, hoje militarizada e em oficial estado de desleixo. Num outro registo de visita, em Bissau Velho conta a Casa dos Direitos, sede da Liga dos Direitos Humanos da Guiné-Bissau, onde há um centro de exposições. E, ainda, o porto de Pidjiguti, passagem obrigatória para quem queira navegar para os Bijagós e um dos espaços mais azafamados da capital. Circular de toca-toca, carrinhas de transporte público, é também um must, sem o qual se perderá uma experiência de elucidativo convívio com o quotidiano do povo guineense. O percurso pode ser dentro da cidade, mas também até Quinhamel, estância pertíssimo da capital, reino da etnia Papel, à volta da qual se desenha paisagem emblemática, manchas de cajueiros, bolanhas, mangais, e se abre a possibilidade de caminhadas ao longo de braços de mar.

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