Para os profissionais do desenvolvimento, os técnicos internacionais das boas práticas e outras mágicas receitas, a avenida é uma lição sobre o “natural” empreendedorismo africano: vendedoras de fruta e hortaliças, comerciantes mauritanos que dependuram roupas, bugigangas e arrogância nas árvores; vendedores de crédito avulso de comunicações e de carregamento de baterias de telemóvel; bancas e barracas a abarrotar de roupas, chinesas e indianas umas, outras do Bangladesh e de países que só ao diabo da globalização lembra, e outras, ainda, sabe-se lá de onde; enlatados, ferragens, CD verdadeiros e falsos, ou mesmo genuinamente falsos; os tutti quanti dos consumos ocidentais adaptáveis, e adaptados, aos desejos africanos ou, para evitar as generalizações politicaamente incorrectas, à imaginação e fantasia guineenses.
Aquele grande rio Cacheu
As águas já não são as mesmas, mas mesmos são, ainda, os nomes, ou o nome: Cacheu. A costa da Guiné ficou conhecida como um epicentro do comércio de escravos, tal como Gorée, uns quilómetros a norte, ao largo da actual Dacar. Em Cacheu, primeira feitoria e primeiro burgo português na região, povoado com gente degredada do reino, houve sobre o assunto nome e proveito. A iniciativa recente de um memorial pretende evocar o infausto fenómeno, que tinha também como parceiros de negócio reinos africanos do interior que vendiam com ligeireza os escravos que capturavam aos europeus. Depósito de memórias de outros tempos é também o pequeno forte nas margens do rio. Ali recolheu ao tempo da tardia descolonização a estatuária do colonialismo, que estava espalhada pelo país: é um museu de heróis alheios.
Mas o lugar não é só de funestas histórias — é também um ponto de partida para visitar o Parque Natural dos Tarrafes de Cacheu, um dos mais interessantes do país. É a maior área de mangue (tarrafe em crioulo da Guiné) de toda a África Ocidental e integra uma reserva de 80 mil hectares, com uma importância regional graças também à variedade faunística — a zona é frequentada por crocodilos, antílopes, jiboias e gazelas, entre muitos outros animais.
Larga-se do pequeno cais de Cacheu, a bordo de uma canoa pública, apurado pelo arrais o passo de dança das marés, e navega-se ao longo dos inumeráveis meandros do rio, um dos mais caudalosos da Guiné, até ao povoado fronteiriço de São Domingos, aproveitando-se as conversas de bordo para agendar incursões às tabancas, mais remotas de Jobel e Elia. Amanhã? Ka tem problema! Risos, de novo.
Os mangais que se avistavam da margem modelam agora a rota do barco e vão revelando aqui e ali pequenas pirogas governadas por pescadores de ostras. E passarinhada, muita passarinhada — o parque é um santuário de muitas espécies, mais de duzentas, como o calau-grande, o pelicano, o pato-ferrão ou o flamingo, algumas de passagem na sua emigração europeia para sul, e tem enorme potencial para atrair amantes do birdwatching.
Cacheu é uma vilória de gente afável e naquela hora em que a luz inclemente dos trópicos se transforma num suave manto dourado os passos do viajante fazem bem em deixar-se guiar pelo curso de gente ao longo da estrada, entre os cajueiros e as casas grandes do povo manjaco. Ali a igrejinha de Nossa Senhora da Natividade, aqui grandes árvores onde se adivinha o caju a ganhar sumo e vulto no meio das folhas.