Depois, a noite. O sol apagou-se no horizonte de água e ouro, a ocidente, a noite africana desce rápida sobre as gentes, as palhotas, as árvores, o asfalto quente, sobre os últimos barcos de pescadores de regresso a casa com as suas velas cansadas. O rio Cacheu podia ser só uma ideia pequenina na escuridão. Mas não é. O rio corre a pouquíssimos metros dos bungalows e o murmúrio das águas enche a noite do viajante. Com ele vem um leve hálito de frescura que entra na intimidade do quarto e apazigua um pouco a inquietação e o cansaço do dia.
Talvez os mapas se enganem
A antiga estrada de Gabu. Assim falado soa a coisa de reino antigo ou de lenda ou de história maravilhosa. O verso mistura memória do tempo colonial e restos de um tempo mítico que África quase perdeu nos sacões da história (re)escrita pelos europeus. A estradinha tem árvores ao longo das margens, é como um ribeiro sombreado. Quem dera ao viajante que não terminasse e assim fosse por esse mundo fora até à eternidade… O trânsito (muito) local é quase nada e deixa tempo para divagações sobre o antigo reino de Gabu, restos do grande Império do Mali, potência sofisticada como afiançam historiadores africanos como Anta Diop e Joseph Ki-Zerbo.
O reino de Gabu era um reino mandinga que os portugueses ainda encontraram quando se meteram a avançar para o interior e que teve a sua glória antes de sucumbir a uma jihad islâmica. O reino estendia-se para terras da Senegâmbia e a Guiné ainda conserva heranças da cultura mandinga. A partilha de África e colonialismo riscaram linhas a eito, as culturas ficaram dos dois lados das fronteiras, como as línguas, e a Guiné é o que é também um pouco à conta disso. Os mapas turísticos e os cerzidos com as linhas nacionalistas não perdem tempo com tais pormenores e as pessoas já têm, afinal, muito com que se preocupar. Põe-se, então, o viajante a pensar como os mapas são incuravelmente amnésicos e como tudo o que é, em qualquer momento, é sempre a soma do que foi. Esta tão diversa Guiné, misterioso ponto de chegada, não cabe nesses pobres mapas, eis o que o viajante arremata, intimamente, enquanto soma quilómetros na antiga estrada de Gabu. Sim, é quase uma certeza: talvez os mapas se enganem.
Regressemos a Bafatá, ao impossível bafo de Bafatá, cidadezinha com uma graça decadente, ruas de casario colonial pintado de cores (ainda) vivas, com varandas à volta. A cidade não é tão animada como Gabu, com o seu comércio de rua e uma atmosfera que tem algo que anuncia a (relativa) proximidade da fronteira senegalesa de Pirada. Bafatá partilha ruas de terra vermelha, mas a semelhança fica por aí: à excepção do mercado, com uma entrada de timbre islâmico, respira-se por vezes na terra natal de Amílcar Cabral uma certa letargia de fim do mundo, iluminada por uma ou outra “espera”, o gracioso e colorido vestido das mulheres guineenses e por alguns mercados de rua. Há também a Casa-Museu de Cabral, o principal herói da luta de libertação, e as margens cénicas e refrescantes do rio Gêba, onde ao fim da tarde vale a pena repousar o olhar nos navegares lentos das canoinhas dos pescadores e no verde dos mangais.