Fugas - Viagens

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Bruges, uma cidade quase humana

Escreve o acaso, insuspeito deus de pequenas e grandes coisas, por linhas empenadas. E não ficaria mal citar o velho Eurípedes: “O esperado nunca se cumpre e para o inesperado um deus abre a porta”. Claro que isto é tão verdade como o contrário, mas assim entendamos a iluminação que caiu sobre o escritor belga Georges Rodenbach, que quase no final do século XIX se lembrou de situar um romance na então agonizante Bruges e fazer da cidade verosímil e omnipresente personagem de um livro de timbre simbolista, consonante com o que era então o air du temps entre alguma intelligentsia literária na Europa. Bruges la morte veio ajudar a reacender as luzes sobre o burgo esquecido e dele fazer objecto amado por almas convenientemente decadentes. Três décadas depois, em 1920, a ópera Die Tote Stadt reforçava a atenção sobre o livro de Rodenbach, que inspirou o autor, o compositor alemão Erich Wolfgang Korngold.

A intriga ficcional de um homem imerso num luto obsessivo pelo desaparecimento da mulher resistiu à passagem de tempo e gerações: acabou, ainda, em inspiração de um policial francês que seria depois adaptado ao cinema, daí resultando aquele que recentemente foi considerado nas páginas da revista Sight and Sound o melhor filme da história do cinema, ultrapassando o veterano Citizen Kane, de Welles: Vertigo, de Alfred Hitchcock, que em Portugal foi rebaptizado como A mulher que viveu duas vezes. Tal como na história original, mas sem as melancolias de Rodenbach, um homem tenta obstinadamente reconstituir noutra mulher alguém que a morte levou - e a história, tal como no livro, acaba mal.

Mas na adaptação cinematográfica quase nada subsiste da originalidade da história de Rodenbach, que é a da concepção da cidade, do espaço urbano de Bruges, com os seus canais, as suas ruelas, as suas casas estreitas de fachadas pontiagudas, como uma personagem - uma personagem com direito a determinar o curso da ficção e os estados de alma dos viventes. Logo no início do romance ficamos a saber que “neste estudo passional quisemos também, e sobretudo, evocar uma cidade - a cidade como personagem fundamental, associada a estados de alma, que aconselha, dissuade, determina a agir”.
A cidade quase se dota de um poder demiúrgico, sugere-nos Rodenbach na breve mas clara advertência ao leitor: “Na realidade, esta Bruges surge quase humana... E estabelece um ascendente sobre as gentes que ali vivem.”

Só muito mais tarde, uma centena de anos depois da publicação do livro, a cidade surge na tela com um estatuto de personagem ou perto disso, em adaptações directas do livro, produções com diferentes origens, belga, francesa, argentina e uma quarta com assinatura do cineasta independente Ronald Chaser. Mais recentemente, em 2008, voltou a ter honras de cenário privilegiado, desta vez de uma comédia negra - no filme Em Bruges -, e consta que essa aparição terá tido uma quota-parte de responsabilidade no aumento do número de visitantes nos últimos anos.

Bruges, apesar de Bruges 

Sigamos os passos do protagonista do livro, Hugues Viane, através de díspares espaços urbanos de Bruges - díspares ora porque a contemporaneidade turística os desfigurou, ora porque se mantêm fiéis a uma atmosfera um tudo-nada fora do tempo. Pode ser um itinerário por essa cidade de esplendor perdido e reencontrado, taciturna, nas páginas de Bruges la morte - um interessantíssimo itinerário, uma Bruges malgré Bruges, um pouco à margem das hordas turísticas que sitiam, sobretudo aos fins-de-semana, o centro histórico da cidade. São esses os dias preferidos das avalanches - não é hipérbole - de turistas belgas, franceses e ingleses.

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