Fugas - Viagens

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Bruges, uma cidade quase humana

No campanário, com James Stewart e Kim Novak

Podemos caminhar ao longo da Verversdijk, seguindo o canal até ao cais Groenerei - o Quai Vert, em francês. A solene antiguidade da arquitectura compõe aqui uma atmosfera que Monsieur Hugues deverá ter testemunhado na sua vivência ficcional, como algumas páginas de Bruges la morte nos dão a ler. Penetramos aqui num desses espaços que Rodenbach escolheu para introduzir a cidade como personagem, recantos de Bruges que foram retratados nas fotografias reproduzidas no livro, inédito e audacioso complemento documental da ficção. “Por isso é importante, uma vez que os cenários de Bruges participam na intriga, reproduzi-los também aqui, intercalados nas páginas: cais, ruas desertas, casas antigas, canais, beguinaria, igrejas, arte sacra, campanário, de forma que os leitores sintam também a presença e a influência da cidade”, justificava o autor. 

Nos seus passeios pela cidade, Hugues evitava o Groet-Market (o nome em flamengo evoca as suas funções de terreiro de mercadejar nos idos medievais) e preferia recantos mais esconsos e sombrios. Mas há pelo menos um momento em que é arrastado pelo destino para a grande praça, ao seguir a dançarina da sua perdição, de razão já perdida como se fora o professor Rath, do Anjo Azul. Não ocorrerá a nenhum forasteiro, hoje, passar ao largo dessa magnífica ágora, sempre muito animada (imagine-se como noutros tempos deveria oferecer a visão de um quadro de Bruegel), quanto mais não seja para se arrimar à subida do extenso escadório de quase quatrocentos degraus do Beffroi, o famoso campanário (levemente) inclinado de Bruges. O sistema de sinos é impressionante e turístico, entre outros secularmente legitimados préstimos e funções. Mas uma memória cinéfila, mesmo distraída ou enfadada das frivolidades de Hollywood, dificilmente deixará de reviver na demorada subida em espiral pelas estreitas escadas a sequência final de Vertigo, o diálogo vertiginoso de James Stewart e Kim Novak até ao único desenlace possível.

Da beguinaria, uma aldeia à parte dentro da cidade, afiançava Rodenbach, consta que estava não menos moribunda que o resto do burgo no século XIX. Este espaço fechado de retiro religioso, de raiz medieval, renasceu entretanto, também, e faz parte de um conjunto de congéneres belgas (como as de Louvain e de Gand, as mais ilustres) classificado pela UNESCO.

Vidas e culturas cruzadas

A catedral gótica de Notre Dame fica a poucos minutos de caminhada da beguinaria. A Madona e o menino, de Miguel Ângelo, é o maior tesouro do templo - diz-se que inicialmente destinado à catedral de Siena, mas emigrado para Bruges no início de século XVI, adquirido por comerciantes locais. Ali estão também os túmulos de Carlos, o Temerário, e de sua filha Maria de Borgonha, neta de Isabel de Portugal, mãe do Infante D. Pedro. Hugues aí se detém, em lúgubres meditações, junto dos túmulos, e de lá sai ainda mais sombrio do que entrou, ainda que para o visitante destes tempos aquele gótico se apresente bastante luminoso, iluminado, se o dia estiver estival e os raios solares se introduzirem na nave através dos vitrais do transepto.

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