Fugas - Viagens

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Bruges, uma cidade quase humana

O cais onde Rodenbach situou a casa de Hugues Viane, o Rozenhoedkaai, está longe de garantir o ambiente soturno da cidade moribunda do século XIX, mesmo se os pergaminhos do casario saltam à vista. O recanto foi tomado de assalto pelo turismo, ainda que não necessariamente por causa do literário infortúnio de Monsieur Hugues. Só num pequeno restaurante vislumbrei um cartaz com uma reprodução da capa do livro, o que não quer dizer que na cidade um empreendedorismo com olhos de falcão não esteja atento ao pousar da presa. Ainda que o romance tenha em Bruges os seus cultores, empreendedores mais ou menos turísticos e espíritos que lhe honrem a memória, não será muita a gente forasteira que se perde pela cidade em busca dos ambientes lúgubres do livro ou com curiosidade por aquela secreta alquimia que transforma lugares em páginas literárias. Mas é verdade que esse interesse tem vindo a ganhar adeptos e que da parte da oferta cultural uma série de iniciativas de índole cultural apela à memória e ao legado do imaginário simbolista do livro. 

O livro de Rodenbach continha uma curiosidade singular - foi o primeiro a incluir fotografias, na altura uma “arte” emergente, pelo que foi olhado com alguma desconfiança pela sempre prudente, amiúde em excessos de cegueira, classe dos editores. Essas imagens podem, afinal, ser hoje companhia de andança pelo velho burgo. Para levar a coisa a sério, escolha-se um desses dias (ou noites) pardos e flamengos que enchem a cidade de ares húmidos e de farrapos de nevoeiro a flutuar sobre os canais, e fazem baixar ainda mais os céus carregados da Flandres.

Pelo canal Spiegelrei também passam as lanchas abarrotadas de turistas, mas o quarteirão, uma zona residencial, é mais sossegado e transborda carisma. Entre as fileiras de casas alvas e avermelhadas dos dois lados subsistem alguns dos edifícios mais antigos de Bruges, dos séculos XV e XVI. A vista do cais Spiegelrei - Cais du Miroir, em francês, uma antiga zona de mercado na Idade Média - é fotogénica q.b. para cativar fotógrafos e fazedores de homemade postcards, como ironizava um divertido arrais ao navegar ao longo do Groenerei numa manhã de neblinas, daquelas que ajudam a compor atmosferas nas fotografias. As navegações nos barquinhos pelos canais mostram vistas panorâmicas, é verdade, mas passam à distância da essência de Bruges, as ruelas que desde a Idade Média se fizeram para calcorrear a pé – e de preferência fora da vertigem estival.

Adiante: o Spiegelrei veio ao verbo porque Monsieur Hugues por aqui gostava de dar os seus macambúzios passeios, talvez para alternar com o mergulho nas escusas e tristonhas vielas medievas. Nesta secção do canal a vista é arejada e nada claustrofóbica, aliás. Talvez até o personagem de Bruges la morte aqui viesse intercalar o luto com um pouquinho de horizonte. Anacronismos perdoados, quiçá até pudesse lamentar, como Brel, numa cantoria de amores desvanecidos ou bem (mal) inumados: “Ay Marieke, Marieke, le ciel flamand / Couleur des tours de Bruges et Gand / Ay Marieke, Marieke, le ciel flamand / Pleure avec moi de Bruges à Gand”. Marieke, ou Marijke: é curioso acaso este equivalente flamengo de Marie, a figura feminina desaparecida que o atormentado Hugues tenta reconstituir numa obscura dançarina que conhece no teatro de Bruges.

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