Há quase seiscentos anos, por volta de 1426, um viageiro ilustre percorria a Europa, de Roma a Londres, de Veneza a Bruges, estanciava nas cortes mais poderosas do continente em missão diplomática ao serviço de um reino que se tinha saído bem numa batalha que ficou conhecida como de Aljubarrota. Espírito cosmopolita alimentado por estas andanças sem muros, vê-se que arribou a Bruges com clareza de ideias na bagagem e o firme propósito de as endereçar a quem de direito no reino distante em que havia deixado casa e irmãos - os da Ínclita Geração.
Parece judicioso concluir que não terá sido apenas fortuito acaso, um tempo vago de afazeres, que levou o Infante D. Pedro a pegar na pena e a escrever ao seu irmão D. Duarte a famosa Carta de Bruges. A missiva era uma espécie de testamento político que parecia adivinhar o retrocesso feudal que aconteceria nas décadas seguintes em Portugal, um dos períodos mais obscuros da história do país, depois de o Infante ter sido afastado da regência do reino, e de ter o irmão, D. Afonso V, ficado à mercê da influência e dos interesses de uma velha nobreza retrógrada e alheia às mudanças que no continente - e Bruges era um notável exemplo - anunciavam o fim dos tempos medievais.
Nesse primeiro quartel do século XV, já a cidade flamenga se tinha afirmado como um porto movimentadíssimo e cosmopolita, um próspero pólo de comércio internacional e berço da emergente economia capitalista, um modelo de governação e, enfim, uma vera cidade de vanguarda à escala europeia. O esplendor de Bruges surgiria, pois, como circunstância propícia, politicamente credível, para a escrita do texto em que D. Pedro lavrava conselhos à administração das coisas do reino lusitano. Um desses avisos, certamente ilustrado por quanto o príncipe vira de governação mais assisada em Bruges e noutras paragens europeias, parece atentar em maleita tão estrutural que ainda hoje nos soa espantosamente familiar: “Um dos erros que lesam a prudência é o número exagerado das pessoas que fazem parte da casa do Rei e da dos príncipes. De onde decorrem as despesas exageradas que recaem sobre o povo, sob a forma de impostos”.
Voltando à Bruges contemporânea: além de integrar uma das estruturas urbanas medievais mais bem conservadas da Europa, classificada pela UNESCO, a cidade tem alguns “segredos” que podem ser preciosos factores para a mais valia-cultural da viagem - coisa assaz estimável nestes tempos de cidades bem ataviadas e frequentadas por muitos milhares de turistas - como é o caso de Bruges. Exagero: a ideia de sigilo é uma torção hiperbólica. Não são, de todo, segredos; serão, uns mais e outros menos, dimensões da textura cultural a que nem sempre o viajante apressado tem a oportunidade de conceder a merecida atenção. Por exemplo: Bruges na literatura e no cinema e como essa presença ajudou a devolver glória e esplendor a esta bela cidade da Flandres.
A cidade que viveu duas vezes
Houve um tempo, depois que brilharam as luzes da ribalta para a cidade flamenga, ao longo dos séculos XIV e XV, em que a sombra da decadência desceu sobre Bruges. O assoreamento do porto, o afastamento do mar, a deslocação dos eixos de comércio, a ascensão de Antuérpia, a transfiguração das conjunturas e equilíbrios políticos na Europa, com a Revolução Industrial a passar bem ao largo, deixaram Bruges à margem de grandes mudanças forjadas pela modernidade. Um mal de dois gumes, como se veria, o segundo deles benéfico a prazo: a conservação da estrutura urbana medieval datada do século XII é hoje a galinha dos ovos de ouro da cidade, um factor de atracção de milhares de visitantes e um dos esteios da economia local.