O forasteiro que se renda à arte funerária dos túmulos, lembrado daquelas linhagens lusitanas jazentes na gótica catedral, bem se pode pôr a magicar na invisível teia de laços que o imerge numa imponderável geometria - e genealogia - de acasos. Nesta estranha arquitectura de encontros diacrónicos que a viagem sempre proporciona convergem o nosso Hugues, o forasteiro contemporâneo e aquelas figuras de ancestralidade portuguesa. É algo que cedo se apreende nestas terras: a partilha ou o cruzamento fértil, em tantos momentos, dos caminhos históricos trilhados por Portugal e pela Flandres.
Bruges, burgo de firmes reminiscências medievais, é, como tantas outras cidades desta Europa culturalmente compósita, um palimpsesto - o tempo que passou desde o distante século VII ali foi pacientemente depositando sedimentos de forma alguma anónimos, tecendo um bordado milenar na pedra das fachadas recortadas sobre os céus baixos da Flandres, no pano dos velhos têxteis flamengos, nas tintas das pinturas de Jan Van Eyck e de Hans Memling, expostas nos museus da cidade.
E o viajante de olhos abertos a este imenso arquivo do norte, que é também um espaço-tempo de vidas e culturas cruzadas, uma cidade quase humana como a da ficção de Rodenbach, pode ensaiar vê-la como se fosse um desenho de Escher: deslocando ligeiramente a perspectiva, apenas com um ligeiro reajustamento do olhar, o burgo torna-se múltiplo, um caleidoscópio também de quanto sucedeu na história da Europa e do mundo.
Outros ícones: cerveja e chocolate
Cerveja e chocolate são duas conhecidas tradições gastronómicas belgas. Há algumas outras, umas mais, outras menos conhecidas, para além das badaladas batatas fritas e dos anexos mexilhões cozinhados – admitamos – de mil e uma maneiras. Dificilmente o visitante escapa a dedicar um pouco de tempo (ou muito, se a motivação para o conhecimento e degustação for maior) a estas duas atracções de Bruges, adequado contraponto – ou complemento - hedonista de uma jornada pela cidade decadente que Georges Rodenbach transformou em personagem de ficção.
A esperança, ou a ilusão, da descoberta de alternativas aos lugares mais populares e concorridos é muitas vezes engodo de guias e escribas capazes de quase tudo para puxar a brasa à sua sardinha. Se imperar a seriedade na narrativa, em Bruges como noutras paragens hiperfrequentadas, os ditos lugares de excelência, para utilizar uma linguagem na moda, cedo deixam de ser segredo – aliás, esse é uma consequência (boa?, má?) da divulgação mediática urbi et orbi do que andam a fazer. Uma boa casa de chocolate (ou de cerveja artesanal) cai nas bocas do mundo em três tempos.
Tradicional ou experimental, eis a escolha que há a fazer no caso dos chocolates. Uma das mais conceituadas (e das mais antigas) chocolatarias tradicionais, mesmo se menos conhecida e menos frequentada por forasteiros, é a Spegelaere Chocalaterie, na Ezelstraat, 92. Pralinés e a especialidade Cobblestones são especialmente populares entre os clientes belgas da casa – o que não quer dizer pouco.