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Salvador: Nos mistérios e no “caos bonito” da Feira de São Joaquim

Passa um carro a vender CD pirata – sobretudo de arrocha, um ritmo criado na Bahia, que “faz o maior sucesso”, com “letras apaixonadas”. Depois passamos pelas bancas dos vendedores, que colam um sem-fim de coisas na parede, adornos como fotografias ou recortes de jornais, frases, dizeres, preces religiosas, cartazes, calendários, mulheres nuas. “Na parede de uma loja, de uma casa, está o espírito de uma pessoa”, observa Adenor ao passar pelas bancas. “Você vê ali o time de futebol e a foto de um grupo de rock. Outro aqui [aponta]: ‘o amor sempre dá um jeito’. Isso aí é o espírito da pessoa.”

Criada nos anos 1960, na Cidade Baixa, a Feira de São Joaquim recebe produtos de várias cidades da zona; na área reformulada, a feira é bastante mais “arrumada” e limpa. “Essa parte é aparentemente organizada, mas não tem nada a ver com o mistério [da zona antiga]”, comenta Adenor quando chegamos à outra ala. “Tem muitos comerciantes aqui que estão quase desistindo, porque com esta mudança perdeu a poesia, o lugar, o costume.”

Estamos agora em frente aos animais arrumados em gaiolas – galinhas, cordeiros – usados no ritual de sacrifício do candomblé. “Pode ser galinha, frango, pato, bode. Isso faz parte.” Polémico? “Preferia comer um animal sacrificado assim do que um frango que não sei como foi tratado, nem como foi morto [no final do ritual do candomblé o animal é servido, diz]”.

As duas vidas de Adenor
Este é um lugar a que Adenor regressa muitas vezes para fotografar, ele que tem andado pela Bahia em busca de tradições – festas populares, mulheres, objectos, lugares. Gostaria de um dia fazer um trabalho com os carregadores da feira, só retratos. “O que daria em troca? Arranjaria um patrocínio para farda nova, disponibilizava um barbeiro para fazer o cabelo ou a barba se ele quisesse.”

É um princípio do seu trabalho, tentar retribuir algo a quem fotografa. “É uma troca. Acho que é uma obrigação, se alguém me proporciona alguma coisa tenho obrigação de, se possível, retribuir. Tenho contrato com grupos em que posso usar as fotos que eu quiser, mas se comercializar tenho que passar 25%.”

Adenor Gondim tem “duas vidas” – uma mais institucional, na qual trabalha para a função pública, e outra em que desenvolve projectos próprios. É formado em Biologia. Houve uma altura – durante uns oito anos – em que esteve afastado da área. Não gostou da relação que se estabelecia com quem contratava – “normalmente o fotógrafo era submisso e o cara autoritário”.

Depois, em 1980, decidiu então dedicar-se à fotografia. “Em Salvador, quem se envolvia com fotografia como hobby começava a fotografar a miséria, as áreas periféricas da cidade. Era um atractivo de conteúdo, não estético. Salvador era uma cidade mágica, surpreendente.” Já ele descreve o seu universo como estando na zona entre classe baixa e média. “Quem cria o folclore, as festas, é o povo”, justifica.

Ele interessa-se por fotografar as tradições e grupos como a Irmandade da Boa Morte (confraria religiosa afro-católica brasileira mantida por mulheres, em Cachoeira), o Nego Fugido (teatro de rua popular), as Caretas de Acupe, coisas que trazem “uma história”. “Eu vejo o seguinte: a grandiosidade de uma pessoa pegar três pedaços de pano e se vestir como um rei, e quando incorpora aquilo ele é um rei. Então o que interessa é o lado lúdico e da maior dignidade que a pessoa pode ter.”

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