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Salvador: Nos mistérios e no “caos bonito” da Feira de São Joaquim

Por Joana Gorjão Henriques (texto) e Vera Moutinho (fotos)

Um fotógrafo baiano leva-nos a visitar um dos lugares emblemáticos de Salvador, a Feira de São Joaquim. Percurso pelos objectos usados no candomblé e pelas bancas personalizadas dos vendedores num lugar que faz “a síntese da cultura” baiana.

Adenor Gondim, fotógrafo baiano que expôs em lugares como o Museu Afro Brasil (em São Paulo), tem-se dedicado à cultura tradicional. E é por isso que nos convida a visitar a Feira de São Joaquim, em Salvador, um mundo de vegetais, frutas, carnes, animais inteiros, frutos secos, mas sobretudo de incenso, ferrinhos, bonecos, ervas, artesanato, pilões para assentamento, colares de contas…

A venda disto, e de todos os elementos que são precisos no candomblé – a religião derivada do animismo africano que no Brasil presta culto aos orixás, uma espécie de arquétipos de forças naturais – é uma das coisas que esta feira tem de especial.

Mal chegamos ao edifício que está como que dividido em dois - a ala recente e a ala mais antiga –, Adenor arrasta-nos pelos corredores labirínticos até encontrarmos Zé do Candomblé, ou Zé Diabo. Zé é artista de ferragens dos orixás: o assentamento de santo no candomblé envolve o ferro; cada orixá tem um nome, uma simbologia, e o pai de santo manda o desenho do ferro do orixá para artistas como Zé criarem a ferragem, explica-nos.

A cada orixá o seu desenho, mas para fazer a ferragem só é necessário ferro, fogo e a mão do homem, diz Zé, “o cara mais conhecido, competente, na feitura desses ferros”, garante, por outro lado, Adenor. O orixá de Zé é Exu, “o primeiro do candomblé”, diz o próprio. Exu é o mensageiro, “quem abre o caminho”. Há 58 anos que Zé se dedica ao ofício que aprendeu aos 10, conta. “Nasci lá dentro”, explica. “Os ferros são lavados, arrumados para puxar o orixá para a terra. O ferro fica na casa do candomblé, ao fim de sete anos vai para sua casa se tem direito ao cargo.” 

Ao longo do tempo, Adenor Gondim foi guardando uns 250 desenhos de ferros que Zé recebia dos pais de santo e depois mandava fora. Agora quer fazer uma exposição. “Ele ganha como autor e eu como fotógrafo”, explica. “Se ele for embora, como fica? Ele não tem herdeiro.” É que outros que fazem ferros na Feira de São Joaquim “são interessantes, mas não têm o brilho, a leveza” de Zé Diabo. 

Continuamos pela ala antiga da feira, passando também por bancas com esculturas de vários orixás. Há ervas, e sal, usado para limpar. Receita para “curar” quem está para baixo, dada por Adenor: sete pedras de sal, misturadas com água limpa; toma-se banho, depois joga-se a água com sal no corpo, deixa-se secar e vai-se dormir, “não pode fazer porra nenhuma, nem transar nem nada”. Adenor diz: “Quando você psicologicamente faz uma coisa com essa intenção, já começa um processo de mudança.”

Nas bancas alinham-se várias entidades religiosas, alguns santos da Igreja católica. A festa de Iemanjá foi há um par de dias, portanto a orixá que é senhora das águas está em grande destaque – vemos várias em vários tamanhos e com várias fisionomias. Há também os defumadores, cada um com uma intenção: arranjar namorado, ganhar dinheiro, trazer o marido de volta…

O chão tem lama, passamos pela mistura confusa da feira que é também mercado, uma “desarrumação”, “beleza”, “caos bonito vivencial e espiritual”, afinal aquilo que “traz o élan da Bahia antiga”, comenta Adenor – a feira está a ser requalificada e com isso perdem-se todas as qualidades que enumerou, considera. 

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