Fernando Augusto Romão passa a soleira da porta e grita para o pessoal que está de jaleca branca atrás do balcão: “Vocês aguentem, que isto vai encher.” O aviso talvez seja desnecessário dada a enchente que volta e meia entra pela loja. Mas ele, que nasceu no Bairro Alto há 88 anos, e que ainda hoje faz da Rua Garrett, no Chiado, um ponto incontornável do seu itinerário, está a torcer para que o negócio dê certo, porque triste, triste era ver a loja outra vez de portas fechadas. “Está muito bonito, está sim senhor. Uns calendariozinhos para dar aos clientes é que era uma grande pintarola.” E tal como raramente entrava na Casa da Sorte para comprar o bilhete da lotaria, porque nem para isso havia dinheiro, sai agora sem provar as famosas cornucópias de ovos da Alcôa, que ali se instalou.
É difícil não dar por estes doces conventuais elegantemente colocados de pé quando se passa em frente à montra. São de longe o doce mais vendido pela pastelaria que vem de Alcobaça e se instalou há duas semanas em Lisboa, diz Paula Alves, a proprietária. E lá dentro podemos fixar-nos nos bolos — castanhas de ovos, manjar dos deuses, diário de D. Inês, mimos de freira, torrão abadessa… (“uma joalharia de bolos”, como Paula Alves ouve alguns clientes comentar) — ou ficar a olhar para as paredes.
Vamos então ver o que já lá estava antes de a Alcôa chegar. Os dois anos de obras foram preenchidos por preocupações para conseguir preservar o património da antiga Casa da Sorte: o resultado de um trabalho “com características únicas” de articulação entre um arquitecto (Francisco Conceição Silva, 1922-1982) e um ceramista (Querubim Lapa, 1925-2016), comenta à Fugas Rita Gomes Ferrão, historiadora da Arte.
Não deveríamos falar em azulejos, já que se trata mais de “placas cerâmicas”, com 20cm por 30cm. A dimensão não é um detalhe: terá sido a maior possível para conseguir entrar nos fornos da fábrica Viúva Lamego. “Essa medida é um módulo, no sentido em que se tornou na unidade de medida para [Conceição Silva] desenhar toda a loja. Se não fosse a cerâmica teríamos uma loja totalmente diferente”, adianta Rita Gomes Ferrão. O espaço, projectado em 1962, é então “o extremo desta articulação entre o artista e o arquitecto”.
Ainda lá estão os espelhos integrados num dos painéis, com uma pequena prateleira de madeira para se preencher os bilhetes (e que agora serve para pousar uma chávena de chá e um doce, uma vez que não há mesas). Também ficou o painel com cobre esmaltado que estava por trás do balcão de madeira (o balcão foi “desmontado e etiquetado, peça por peça, e hoje está em Alcobaça, mas um dia será novamente utilizado”, assegura a proprietária; o actual “tem o mesmo desenho”, diz, mas é em vidro, para expor os doces). Estão também os azulejos exteriores, azuis e brancos, que se “integram no contexto pombalino”, afirma agora a historiadora. E nas portas há os puxadores desenhados por Conceição Silva e que até aqui nunca tinham sido fabricados.
Para Rita Gomes Ferrão, é natural as lojas verem o seu uso alterado e essa é por vezes uma condição “para a cidade se manter viva”. Mas isso não pode implicar a destruição do património, frequentemente por “desconhecimento dos proprietários”. Não foi o caso.
- Nome
- Alcôa
- Local
- Lisboa, Mártires, Rua Garrett, 37
- Telefone
- 211 367 183
- Horarios
- Todos os dias das 09:00 às 22:00
- Website
- http://www.pastelaria-alcoa.com/