À espera de Poirot
Quis Manuela que o primeiro almoço acontecesse num último andar de um restaurante turco frequentado sobretudo por turcos, mas com vista para o "Hipódromo de Constantinopla", actual praça de Sultanahmet. "Doner kebap? Fistikli kebap? Iskender kebap? " E que seguíssemos, a pé, com o vagar de quem se confronta com o novo a cada passo, até à Estação Expresso Oriente, onde haveríamos de jantar.
Há muito que o luxuoso comboio da Companhia Internacional Wagons-lits deixou de ligar Paris a Istambul, mas ainda ali chegam comboios que ligam a Europa ao Sudeste Asiático. A traça original resiste. Deslumbram os vitrais em salas como aquela na qual vimos dervixes a rodopiar.
Eram três dervixes muito, muito jovens. Vestiam túnicas brancas e capas pretas. Usavam chapéus de lã, altos, cilíndricos. Primeiro rezaram. Depois, circularam pela sala, fazendo vénias. Por fim, despiram as capas e começaram a rodopiar. No início rodopiavam devagar, com as mãos cruzadas sobre os ombros. Volvidos alguns minutos, rodopiavam depressa, erguendo os braços. Mais depressa ainda, com uma mão cima, a outra para baixo. O pé esquerdo como que pregado no chão, a perna direita girando. De olhos fechados, de pé, em perfeito equilíbrio.
Difícil fotografar os seguidores de Mevlana Jelaleddin Rumi, de quem não li os seis volumes com reflexões e orientações, sequer um, de quem apenas sei que acreditava que a melhor via para alcançar a divindade era a poesia, a música, a dança. A luz era demasiado fraca, a liberdade de movimentos demasiado limitada. Mesmo assim, sorrisos ao sair da cerimónia sema, declarada pela UNESCO património Oral Intangível da Humanidade, para o belíssimo restaurante ao lado.
O lugar não se livra da aura alimentada por livros como Crime no Expresso do Oriente, de Agatha Christie. Quase podia ver o detective belga Hercule Poirot a embarcar, regressado da Síria, sem suspeitar que na segunda noite ouviria um estrondo: "Ce n'est rien. Je me suis trompé."
A melhor experiência gastronómica, porém, aconteceu no lado asiático, já quase no fim da viagem. Viajámos uns 20 minutos de ferry até a antiga península de Anatólia. Já nada vimos da primeira cidade grega. Manuela avisara que, muito por causa da sua posição geográfica, a área fora muitas vezes devorada por conflitos armados. Fizemos a viagem de ferry a dar pão às gaivotas para as fotografar com a cidade em fundo.
Saímos no porto de Kadikoy, zona de forte actividade comercial. Caminhámos até à estação Haydarpasa, de estilo neo-clássico, onde se fez a abertura de Istambul Capital Europeia da Cultura 2010. Uma família tirava fotografias à porta da obra dos arquitectos alemães Ottoritter e Helmut Conu.
Subimos depois os degraus do restaurante Çiya Sofrası, do chef Musa Dagdeviren, para uma degustação. Nasceu em Nizip, Gaziantep, em 1960. Anda na arte desde os cinco anos de idade. Parte de "memórias" da gastronomia esquecida para criar um menu único com entradas, pratos e sobremesas. Um manjar.
Nesse dia, subimos a Torre de Gálata para dizer adeus à cidade. Do cimo da torre de 70 metros vê-se a Ponte de Gálata, o Palácio Topkapi, a Mesquita Azul, Hagia Shopia, o mar de Mármara, o Bósforo. Ainda ouvimos o cântico dos muezzins ecoar em dezenas de lugares ao mesmo tempo antes de o sol se abater sobre a cidade. Depois descemos pela última vez a Avenida Istiklâl e vimos o velho Ara Güler sentado a tomar chá. Era como se, sem saber, conferisse um sentido maior àqueles dias. Partimos. Íamos ouvir Cristina Branco, que nessa noite, por acaso, actuava na Cemal Re it Rey. Que melhor forma de regressar a Portugal?