A Plaza de Puerta de Moros, a mesma onde Marisa Paredes prendeu o sapato na fonte na cena do filme A Flor do Meu Segredo, de Almodóvar, e que uma rapariga agora ali tenta imitar, começa a encher-se quando as noites aquecem. Na Plaza del Alamillo, o restaurante Delic é poiso de artistas, intelectuais e alternativos, - mas com dinheiro. A cultura de rua continua a ser predominante e bairros como Chueca, Justicia, Malasaña e La Latina procuraram, nos últimos anos, combater uma imagem de degradação, de violência e "ébi" - pronúncia espanhola para o inglês "heavy".
Fernando, 34 anos, é argentino e, por isso mesmo, "crises já foram muitas". Trabalha no bar do Micro Teatro por Dinero, um teatrinho que se montou há um ano num antigo prostíbulo na Calle Loreto y Chicote. As peças, de manhã para crianças, à tarde para adolescentes e à noite para adultos, são temáticas e de companhias que não têm espaço. "São feitas para uma população que regressou a este bairro e que foge da crise como quem quer fugir da realidade", conta. Fernando trabalha no bar para pagar os estudos de Química e continuar a trabalhar no laboratório da faculdade. Veio para Madrid por causa do jazz. Enquanto nos serve uma cerveja, tamborila os dedos no balcão. "Há cinco anos as câmaras de vigilância não existiam, e o ambiente cultural que entretanto se criou, para gente de classe média e que viaja, convivem bem, porque precisa desse outro lado mais pesado."
Nunca foi segredo para a polícia que as mulheres que passavam horas sentadas em bancos ou encostadas a fachadas de antigos cinemas, hoje fechados, não estavam à espera de alguém. São prostitutas, "con orgullo", grita uma delas a um carro na Calle del Desengaño. "Tenho 47 anos e há 24 que estou em Madrid. Chama-me Laura, se queres. Pode ser que seja o meu nome". Laura então, nascida em Ceuta e criada na Andaluzia, onde aprendeu com o pai tudo sobre toureio. Laura é aquilo a que Jaime chama de "prostitutas tradicionais", em contraste com as raparigas novas que enchem a Calle de la Montera, entre a Gran Vía e as Puertas del Sol. Estas são mais novas, maioritariamente estrangeiras, mais produzidas - podiam confundir-se com as espanholas adolescentes que saem da Zara para entrar no El Corte Inglés, e que correm da Sfera para a Mango aos sábados à tarde - ouvimos de uma: "Hoje posso gastar 100 euros, vou buscar as botas da semana passada."
As de bairros como Fuencarral, até há anos uma das artérias mais alternativas de Madrid e hoje colonizada por lojas de marca e inevitavelmente descaracterizadas, são "más auténticas", diz uma.
Laura, se for esse o seu nome, pergunta se andamos à procura de estrelas como Angela Molina, "conhecida internacionalmente". No outro dia teve que afugentar um paparazzo que esperava a filha da actriz. "Há muitos actores aqui na zona, muitos artistas, mas nenhum tão grande como nós."
Percam-se em Madrid
Três dias não fazem uma viagem e uma viagem não faz uma cidade, como uma cidade não cabe num guia. É como a frase que vimos várias vezes, memória das legislativas recentes: "Os nossos sonhos não cabem na vossa urna." E lembramo-nos da frase de uma rapariga, cigarro na mão e cerveja na outra, à porta do La Milana Bonita: "O segredo para se viver em Madrid? É ser-se feliz. Que mais há?" O nome do bar vem do livro de Miguel Delibes Los Santos Inocentes (1981), onde um "tonto" é morto pelo patrão por só repetir "La Milana Bonita", expressão que se tornou símbolo de liberdade. Talvez não exista melhor forma de falar de Madrid do que saber o que se passa com os seus habitantes. E do que esta frase posta em todos os bares: "Para todo mal, mezcal; para todo bien, también".