Fugas - viagens

  • Gleb Garanich/Reuters
  • Hotel Victoria, onde fica instalada a selecção portuguesa
    Hotel Victoria, onde fica instalada a selecção portuguesa Vasily Fedosenko/Reuters

Continuação: página 2 de 3

Donetsk: Minas, camaradas e oligarcas

Com os comunistas, Yuzovka passou a ser Stalino (que significa aço). Krutschev, que liderou a URSS entre 1956 e 1964 e viveu aqui, mudou o nome da cidade para Donetsk nos anos 1960, por causa da referência a Estaline. Foi em pleno estalinismo, nos anos 1930, que um mineiro local se tornou notícia em toda a União Soviética. Chamava-se Alexei Stakhanov e era famoso por bater todos os recordes de produção. O funcionário do mês em versão soviética ou o workaholic do comunismo, se quiserem. Stakhanov simbolizava a superioridade do comunismo sobre o capitalismo e o seu exemplo deu origem ao movimento Stakhanovista, que visava estimular a produtividade. Fundado já na era soviética, o Shakhtar (que significa mineiro) passou a chamar-se Stakhanovets entre 1936 e 1946. No museu do clube há recortes de imprensa onde eram relatados os sucessivos recordes do mineiro ucraniano.

A figura principal desse museu é o actual presidente, Rinat Akhmetov, que transformou o Shakhtar num clube capaz de ganhar um troféu europeu. O futebol, elemento central da identidade desta cidade sem referências, liga a era soviética e a era pós-soviética, quando as fábricas e as minas eram assaltadas por gangues armados que convidavam os donos a vendê-las à pessoa adequada. "Era Chicago nos anos 1930. Agora já não é assim", diz-me Zlotan. Temos a sensação de estar em Chicago depois de Al Capone ter ganho. Akhmetov pagou do seu bolso o novo estádio e o novo terminal do aeroporto, por sinal baptizado com o nome de um compositor russo, Sergey Prokofiev.

Imponente, o Donbass Arena é o mais interessante dos quatro estádios ucranianos do Euro. Foi construído na zona mais nobre da cidade, está rodeado por um grande jardim e ofusca mesmo o monumento aos heróis da II Guerra Mundial, o que não é coisa pouca. Donetsk é o Shakhtar e o Shakhtar é Donetsk. As marcas de Akhmetov, o terceiro homem da lenda de Donetsk, vão ficar bem vincadas na cidade sem memória.

Antes de me despedir, sento-me num banco no parque que rodeia o estádio. Um fim de tarde fresco com o estádio em forma de disco voador e as réplicas dos blindados da II Guerra no meu campo de visão. Há música romântica para piano a sair dos altifalantes, carros a subir e a descer a avenida que atravessa o rio; ao fundo, as minas, os montes abandonados, o fumo das fábricas. As verdadeiras marcas da cidade-fábrica que um galês veio fundar aos confins do império dos czares.

Falta a despedida. Cinco da manhã e aproximo-me do velho (mas operacional, até 28 de Maio) aeroporto de Donetsk. À entrada, o táxi abranda por causa dos buracos. Ao fundo, o novo aeroporto, por enquanto inútil e vazio, reluz em todo seu esplendor no primeiro alvor da madrugada. Entro na velha aerogare. Há dois balcões de check-in abertos, mas não está especificado que são para voos diferentes. Quando chega a minha vez, dizem-me, num tom ríspido: "No". E apontam-me o fim da fila: enganei-me no balcão, é a conclusão que retiro do vazio linguístico entre quem não fala inglês e quem não fala russo. Espero pacientemente, o check-in segue à velocidade de tartaruga. Impaciento-me. Sem os aeroportos novos, não haveria Euro na Ucrânia: as equipas ficavam todas retidas no check-in. Olho para cima e consolo-me. O que vejo? Um baixo-relevo de um cosmonauta, orgulho da União Soviética, sorrindo e saudando com a mão os terráqueos que desesperam para embarcar. Quero acreditar que foi um adeus irónico. Será que os cosmonautas falavam... inglês?

--%>