Mas, saindo dos guias genéricos, seguindo as placas nas quais nem todos reparam, damos por nós a entrar na Villa Farnesina, onde, por poucas horas por dia, podemos encontrar a escola de Rafael em frescos que representam um equilíbrio de forças que, durante séculos, permitiu a Roma ser o ponto de chegada de um conjunto de divergências e, ainda assim, poder ser um símbolo do que deveria proteger-se. É lá que encontramos o belíssimo O Triunfo de Galatea, que Rafael pintou a pedido de Agostini Chigi, e onde deixou impressas representações astrológicas que mostravam a posição das estrelas no momento do nascimento do patrono. É uma casa pequena, pequena em demasia para a sua riqueza, e para a sua história. Como poder estar na mesma sala onde Cupido e Psyche se encontram sem nos sentirmos a mais? Será assim constantemente em Roma. Achamo-nos sempre a mais.
Em conversa, durante a viagem, recebo uma mensagem de uma amiga a perguntar o que estou a achar da cidade. Respondo-lhe que descubro uma cidade feita para esmagar o próprio homem. Nada é à escala humana. O poder exibe-se e vergamo-nos a ele. Falo-lhe de Laura, uma mulher do Sul de Itália que encontrei junto às ruínas da Via dei Fori Imperiali e me disse, num suspiro: “Roma é um concentrado de beleza.” Mas não estará a tragédia na Grécia?, perguntei eu a Laura. E ela responde-me: “A tragédia em Atenas é poética, aqui é política.”
E, digo eu à minha amiga, depois de o ter repetido à mulher que, afinal, é professora de História da Arte, “uma coisa que em Itália não existe, porque não se faz História a partir daquilo que está vivo — e olhe à sua volta, acha que alguma destas pedras não lhe fala? É por isso que é política, porque interfere na sua vida”, que esta ideia de esmagamento tem tudo a ver com poder. Em Zagreb a estátua do general Ban Jelaic promete tirar-nos os olhos com a ponta afiada da espada. Em Istambul a imagem de Ataturk está presente em todo o lado, em Bratislava, Sofia ou Bucareste são os pedestais das estátuas que antes foram do regime que, vazias, esperam por novos mitos. Mas em nenhuma outra cidade, nem em Atenas nem em São Petersburgo, que copiou a Europa para dela se aproximar e o que fez foi construir um conto de fadas, só em Roma, de todas as cidades italianas, esta ideia do poder se distingue do que quer que tenhamos conhecido antes.
Nem em Viena, onde os palácios recordam as fortunas que antes os adornavam, nem na governança de Londres ou na relação de amor-ódio pelo poder que ocupa Paris, alguma vez se sentiu tamanha força (talvez, a um outro nível, penso agora, nas figurações tribais que se encontram nas paisagens perdidas da auto-estrada que vai de Port Elizabeth à Cidade do Cabo, na África do Sul). Roma vive de uma estatuária cujas sombras comem o passeio e as nossas próprias sombras. Consomem o ar e o próprio tempo, forçam-nos a desviar o olhar, a enterrá-lo, submisso, no chão.
E essa amiga dizia-me: “Acho que toda a Itália é à escala humana, pela falta de deferência com os monumentos: tropeça-se neles, estão misturados connosco, não há cintas de museu a protegê-los?. A Fontana di Trevi é num virar de esquina como um quiosque.” E eu digo-lhe que sim, que é verdade, mas depois de ter visto, e apenas na entrada, do Museu da Cidade modelos a uma escala sobre-humana, do baptismo de São João Baptista, é tudo enorme, tudo distante. E dou-lhe um exemplo: o êxtase de Santa Teresa, de Bernini, na igreja de Santa Maria della Vittoria, na Via XX Settembre. Na sua inversão de escala, somos nós que ficamos pequenos. Talvez porque essa paixão, a Deus, seja, irrepresentável. Talvez porque “em Deus tudo é movimento”, como escreveu Mega Ferreira. Talvez. Mas a resposta estará nas palavras da própria Teresa d’Ávila: “De tal sorte pôde amor,/ Alma, em Mim te retratar,/ Que nenhum sábio pintor/ Sab’ria com tal primor/ Tal imagem estampar”.