Roma, na sua “geografia afectiva”, para usar a expressão de Mega Ferreira, resiste ao que sobre ela se possa projectar. Diz-me um amigo antes de partir que, em Roma, “é mais difícil encontrar a vulgaridade quando tudo é imensamente grandioso”. Essa grandiosidade tem uma imagem, seja de onde estejamos a ver Roma. Dos telhados da Basílica de São Pedro, acessíveis depois de mais de 800 degraus em inclinada gravidade, onde é possível sentar e comer um iogurte sem que alguém ache isso estranho e, depois olhar à volta, por entre o cuidado das estátuas de santos que observam a enorme praça, concebida em oval porque assim é a forma do mundo e assim o abraço intencional que o Vaticano queria dar a quem fizese a Via della Conciliazione, ou do lado oposto, no terraço do Castel Sant’Angelo, sob a espada protectora do anjo.
Roma, eterna “porque nunca nada fica por imaginar”, diz-nos Carlo, há anos ao balcão da pequena loja do Castel Sant’Angelo, onde vai conduzindo os visitantes e iludindo, não sem ambígua resposta, a existência de um túnel entre o Castel e a Basílica, que os turistas agora procuram aberta depois de terem visto Tom Hanks a entrar e sair para salvar o Papado no filme Anjos e Demónios, do romancista Dan Brown, que Roma e o Vaticano, de tão anestesiados, aceitaram. “Há muitas histórias em Roma que podem ser contadas, mas nenhuma é melhor do que aquela que construir para si.” A frase, diz Carlo, é de um filme do qual ele já não se lembra o título, “são tantos, tão bons, talvez seja do Fellini”.
Esmagar o homem
Será difícil não imaginar uma Roma a partir dos filmes que a partir dela se fizeram. Tudo parecerá, então, uma imagem que copia ou podia ser copiada por um filme. Os polícias que pescam nas margens da Isola, olhando, sem surpresa, para os vagabundos que acamparam debaixo da ponte Garibaldi. Os miúdos que desafiam as ordens dos pais e entram dentro da fonte Acqua Paola, onde Roma se apresenta como um enorme lego por construir. Os turistas que fazem fila para testarem a verdade na enorme boca que fica na Piazza Bocca della Verità. O ensaio de uma banda de metais na escadaria da Piazza di Spagnia. Os gatos no Largo da Torre Argentina, onde se imagina que Júlio César foi assassinado, a tomarem conta das ruínas e a observarem quem os observa, gordos, magnâmimos, tranquilamente ameaçadores. A impassividade, tão pueril, tão hipnótica, dos rapazes da guarda suíça, que, desafiando qualquer lógica que as teorias do teatro andam longe de saber explicar, oferecem uma performance de resiliência a quem os fotografa. Os despiques entre as lojas de gelado no Travestere. As estafetas que um grupo de amigos faz no Circo Massimo, celebrando-se como antigos heróis olímpicos. A imaginação de um membro do corpo que, no intervalo da ópera no Teatro dell’Opera, se vende a um maestro, disputando-se com o próprio companheiro, também ele cantor.
Ou a conversa entre amigas austríacas que, sentadas ao nosso lado, falam da sensualidade, do corpo e do sexo, e do que aprenderam com o cinema italiano. Uma fala de Anna Magnani, lembrando o seu telurismo, que a outra corrige por enraizamento, mas as duas a falarem do que é essencial, de um corpo que age como se fosse a lama cuspida depois da convulsão, como Pina Bausch pôs os seus bailarinos a fazer nessa chapada de mão feita que é Viktor, a peça que foi criar a Roma em 1986. A outra fala de Claudia Cardinalle, da perversa sedução que a dengosidade dos seus movimentos sugeria, mais imaginada que sentida, mais intense porque demorada. E entre uma e outra, esquecendo propositadamente Monica Vitti, Giuletta Massina, “ah!, a Sofia Loren, esqueceste-te da Sofia Loren”, diz uma. “Não me esqueci, mas não me comparo”, diz a outra, deixando cair na ambiguidade o que entende por sexo, por desejo, por sensualidade. Vão discorrendo, entre a antipasti e o primo piatto, já bebidas, com os sacos de compras das lojas da Via Vennetto, onde não poderiam deixar de ir.