E então lembra-nos dos filmes de Fellini, de como nunca lhes falhava este conflito entre a humildade e a transcendência. Fosse Ekberg na fonte de Trevi, fosse Massina na estrada a tentar consolar Anthony Quinn, fossem as colossais putas na alegórica Roma ou a consciência da imensa fragilidade de Casanova. E hoje, num país em crise, sob ajuda económica, o que filmaria Fellini? A pergunta é feita pela guia que nos leva ao Usina 5, o famoso estúdio onde Fellini viveu a sua vida — “porque Roma aqui pode ser o que eu quiser”, como conta num documentário que o homenageia na Cinecittà. “Filmaria a crise”, dizem, ao mesmo tempo, uma francesa com quatro irrequietos filhos e uma italiana, que acompanha o fascínio do namorado. Mas que crise? Onde é que ela se vê? Lojas cheias, restaurantes com filas de espera, carros a cruzarem a Via Venneto, tal qual como no La Dolce Vita.
É possível estar em Roma e ignorar a crise? É. Mas também só em Roma, numa Roma que nunca quis olhar para a realidade, se pode descobrir, olhos dentro, o confronto entre as Itálias que nunca se deram mas foram forçadas a conviver dentro do mesmo território. As filas de turistas para entrar no Coliseu fazem com que as bilheteiras fechem duas horas antes do previsto. E as pinturas naïf vendidas a preços demasiado elevados para a sua qualidade na Piazza Navona saem como se fossem gratuitas. E as duas horas de espera para entrar na Basílica de São Pedro permitem guardar diálogos trocados entre italianos de todas as zonas do país e de turistas de todas as partes do mundo.
Mas é na dolência de um domingo à tarde, fugindo à chuva que insiste em cair, e depois de termos encontrado nos postes da Via del Corso mensagens de apoio e repúdio às políticas de Mario Monti, que ouvimos o que achávamos copiado do que Anouk Aimée diz a Marcello Mastroianni numa madrugada das muitas que passaram acordados em La Dolce Vita: “Talvez os tenhamos convencido de que podiam ser iguais a nós.”
Na livraria do Pallazo delle Espozicioni, onde convivem uma exposição genérica sobre a Paris fotografada por Doisneau e uma outra sobre a rota da seda, ouvimos a conversa entre dois casais que ocupam o corredor dos livros de arte e design. Diz uma das mulheres: “O povo de Itália explica-se assim: a pequena e média burguesia quiseram chegar ao poder o que, eventualmente, conseguiram, sem meios nem muito talento, à força de verem falir os senhores dos palácios. E, porque os queriam imitar, puseram nos seus pés os chinelos que invejavam, mas para os quais nem tamanho tinham, sujos ainda com terra do campesinato.” Dá vontade de interromper, de perguntar se a ausência de cartazes de protesto nas ruas, a normalidade anormal que os circuitos turísticos garantem, a implacabilidade de um país sob controlo financeiro nada fizeram para alterar a visão de um país sem sentido de auto-crítica. E, apanhados a ouvir a conversa, o homem do outro casal, diz, para que o possamos ouvir: “Eventualmente a Itália não fez mais do que antecipar toda a Europa. É essa a sua grandeza.” E ela responde: “É essa a armadilha em que se vive. O povo não tem altura para os tectos dos palácios onde vive.”