Fugas - viagens

  • Adriano Miranda
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Dentro de uma Rússia há sempre outra Rússia

Na estrada de água

O barco vai de partida, adeus ao canal de Moscovo. Agora é uma semana de barco para o relaxe total. Esqueça os grandes cruzeiros. Aqui temos solário, três barzinhos e dois restaurantes, temos umas mini-aulas de russo, concertos, shows que incluem os passageiros, DJ com clássicos pop de sempre. Mesmo que não se dance, quem pode esquecer a imagem de um par a dançar em slow o Sailing popularizado por Rod Stewart ou, momento dos momentos, a Nikita de Elton Jonh pela noite fora enquanto flutuamos no Volga? Tudo no barco é pequenino, acolhedor e familiar, passeio contra-indicado para viciados em adrenalina. A grande maioria dos passageiros é, até, sénior, confirmam-nos, e nós até nos sentimos uns jovens.

Esta vai ser uma semana de sossego, a ver as margens passarem, o barco a cortar as águas devagarinho, uma vegetação mais rasteira que frondosa, aqui e ali, de vez em quando, um vilarejo, uma fábrica, uma ruína, umas crianças que nos dizem adeus de um cais, um agricultor seminu a cavar sob a torreira do sol. Uma paz minimal. E é mesmo um descanso, até porque os passeios a terra, um por dia, são curtos, duas ou três horas. O resto é contemplação. E comida, que, claro, praticamente todas as refeições são a bordo e vão exemplificando, na medida do possível, a cozinha russa. 

De vez em quando, desperta-nos a voz de Anna com o seu duo acordeonista, cantora potente e lírica que lança canções tradicionais ao ar com uma beleza de banda sonora perfeita. “Kalinka, kalinka, kalinka maya/V sadu yagada, malinka, malinka, maya” que, na verdade, é como quem canta amores cantando amores e framboesas. Quantas vezes se pode repetir este hino? “Muitas, muitas, até gosto de cantá-la.” Pequenina e roliça, a ruiva Anna é estrela da navegação, canta em palco, pelos corredores, canta connosco (até canta, e bem, o “Cheira bem, cheira a Lisboa” se for preciso).

E, de vez em quando, erguem-se surpresas enquanto navegamos. Lá à frente, subitamente, pode surgir a visão fantasmagórica no meio das águas do campanário da submersa catedral de São Nicolau sobre o Zhabna, um sinal do que está afundado em nome da nossa estrada de água. Não é caso único de afundanço, há mais pelo caminho desta excepcional via navegável.

“Volga, volga, minha mãe”, diz uma das canções russas que ouviremos na viagem. Não é de estranhar que uma das imagens mais belas seja a estátua da Mãe Volga, à entrada da gigantesca represa de Rybinsk. A “mãe” surge do rio, num pedestal-ilha com a mão estendida à sua frente como pronta a agarrar quem precisar de ajuda. Porque se agora a via é navegável e segura, nem sempre assim foi, muito pelo contrário. A obra de todo o sistema Volga-Báltico é impressionante e “em si própria um espectáculo”, como nos sublinhará o comandante do navio, Nikolay Semprun. A navegação faz-se por canais e represas gigantescas, grandes rios, não só como o Volga, Svir ou Neva, lagos que são mares, como o maior da Europa, Ladoga (18mil km2 de superfície), que tem ao lado o segundo maior do continente, o Onega. Já para não contar com as imensas eclusas, “elevadores” hidráulicos que permitem aos barcos subir ou baixar em zonas de desnível. Só nós vamos passar por 18 e a cada uma, novo “espectáculo”. “É obrigatório ver a de Uglich”, garantem-nos. O show é simples mas impactante: o barco entra nas comportas e eleva-se ou baixa-se nas águas, seguindo depois o seu caminho. Ao longo do trajecto, habituamo-nos a estes “elevadores” e ao seu corrupio, incluindo de bandos de aves que rodeiam e esvoaçam em volta das eclusas.

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