Fugas - viagens

  • Adriano Miranda
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Dentro de uma Rússia há sempre outra Rússia

A ilha do dia seguinte é outro caso à parte. Chegamos de manhãzinha a Mandrogui, outra antiga aldeia da Carélia. Foi destruída durante a Segunda Guerra Mundial e assim ficou até aos anos 1990. Eis que um empresário russo, Sergei Gutzeit, passa de barco e a “redescobre”. Torna-se uma paixão pessoal voltar a dar-lhe vida. Moradores foram atraídos com casa e trabalho. Nasceram hotéis em casas tradicionais, museus (mais um de vodka, lá está, outro de samovares), pavilhões para piqueniques (o nosso almoço foi uma espetadinha feita ali mesmo), casas de artesãos, minizoo, floresceram carpinteiros, oleiros, ferreiros, cavalos e carruagens, artes do vidro e do âmbar, até novos criadores de design a reinventar materiais. O fogo chama-nos e o sorriso do ferreiro Sergey é cativante, bigode de aço, mãos de ferro. Atiça o fogo para a foto e bate a bigorna com gosto enquanto dá lustro ao seu “little english” e responde a Portugal com o estalido “Ronaldo, Ronaldo”. É outra aldeia levantada do chão e, entre o cenário e as pessoas a trajarem vestes antigas, poderíamos até chegar a pensar que tínhamos realmente viajado no tempo, não fossem os seis barcos de cruzeiros entretanto chegados…

Enquanto sonhamos com as riquezas e as noites brancas de São Petersburgo, que ao longo de todo o percurso se têm vindo a sentir no anoitecer mais tardio e o amanhecer mais temporão (já despertámos às quatro e picos com luz), voltámos ao nosso Rublev, que esta noite somos também estrelas: ao palco sobem representações de cada país dos passageiros para cantarem uma canção das suas e uma russa, e quem somos nós para faltar? Portugueses somos oito, por isso, como no resto do cruzeiro, vivemos com Espanha em união ibérica. E, juntos, somos um êxito a trinar ClavelitosCheira bem, cheira Lisboa e, pasme-se, um clássico local, Vecherniy Zvon. Chuva de aplausos, obviamente. A nossa canção russa fala de como as badaladas nocturnas de um sino levam o pensamento até à saudade de casa, da pátria, do primeiro amor. O barco avança pela noite, cada vez mais branca, e pela nostalgia russa.

São Petersburgo entre nuvens

E, por fim, a meca: Leninegrado, Petrogado, Petersburgo, tudo de uma vez só. A monumentalidade da cidade entra-nos pelos olhos adentro, entre rio e canais, Veneza do Norte com todo o direito ao lugar-comum, flutuando sobre centenas de ilhas e terras roubadas às águas, de coração palaciano, corpo dado ao ornamento e ao dourado. Reluz que ofusca e até num dia de quatro estações, do sol à chuva de Verão ao entardecer de vento invernoso, do azul ao cinza, nos consegue perturbar os sentidos. Vamos em visita panorâmica por Petersburgo e é um fascínio em movimento, cruzado pelo literário rio Neva rumo ao golfo da Finlândia no Báltico. 

Esta é outra Rússia, uma máquina de turismo, uma cidade-museu em que serpenteamos com pouco tempo para lhe sentir a vida mais real. Mas pressentimos a cada palácio (se não são um milhão, parecem), a cada quilómetro de mármore e colunas, cúpula dourada e detalhe renascentista, jardim e ponte, livro e sinfonia, a outra versão da matrioska russa, império cosmopolita virado a Ocidente — é que, como diz Olga, a nossa guia, “São Petersburgo é Europa” (onde ficará a Rússia?). A cidade fundada por Pedro o Grande há pouco mais de três séculos, tornada maior pela grande Catarina, atormentada pelas batalhas, merece mais que um dia e pouco da vida de uma pessoa (tal como Moscovo, mas a vida é assim).

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