Haverá incontáveis modos de viajar, porventura tantos quantas as motivações. Os viajantes que, como Zenão, o personagem de Marguerite Yourcenar, desejarem manter os olhos abertos e curiosos até ao último segundo de vida, encontram nas páginas de Sob o sol jaguar, um conto de Italo Calvino, uma lúcida iluminação, cuja sabedoria transcende o estrito domínio da gastronomia. Propõe Calvino que “a verdadeira viagem, enquanto introspecção de um ‘fora’ diferente de um nosso habitual, implica uma mudança total de alimentação, um engolir o país visitado, na sua fauna e flora e na sua cultura (...), fazendo-o passar pelos lábios e pelo esófago”.
A enunciação de Calvino também pode ser tomada como uma poderosíssima metáfora, num tempo em que as agências de viagem prometem (e os turistas a si mesmos) viagens reais a mundos “exóticos” ou inverosímeis evasões tão assépticas quanto fiéis ao mais rigoroso espírito securitário. Em Sob o sol jaguar, texto cujo assunto de eleição é o paladar, sugere-se que o viajar deve constituir uma experiência total, requisito indispensável nestes tempos pós-modernos de contínuos simulacros, em que o destino da viagem deixou de ser o que figurava, antes, nos mapas e se viu substituído por vistosas colecções de postais em tamanho natural: “Este é o único modo de viajar que tem sentido hoje em dia, quando tudo o que é visível se pode ver até na televisão sem nos mexermos do sofá.”
Engolir cultura, no sentido mais estrito do primeiro termo da expressão e no mais amplo do segundo, seria, neste filosofar de Calvino, uma fórmula da ideia da viagem como processo e instância de aprendizagem. No caso do continente de sabores asiático, a apreensão da multiculturalidade e das suas manifestações por via da experiência da comida de rua significa recuperar um pouco da relação com o real e, sobretudo, honrar o compromisso da verdadeira e honesta viagem — o esforço de descentração cultural e a mitigação do fatal etnocentrismo do viajante. E, claro, obviar as traições habituais a que costumamos condenar as papilas gustativas, já que, como acrescenta o nosso Calvino, “não se tem o mesmo resultado frequentando os restaurantes exóticos das nossas metrópoles: estes falseiam tanto a realidade da cozinha a que pretendem fazer referência que, do ponto de vista da experiência cognitiva que se pode extrair, equivalem não a um documentário, mas sim a uma reconstrução ambiental num estúdio cinematográfico”. Que outro lugar haverá, portanto, melhor do que a rua para se engolir um país?
Da matriz chinesa à multiculturalidade
Tema de capa de uma edição da revista Time há algum tempo, a comida de rua asiática goza de um justificado prestígio: ela testemunha a permanente fusão cultural, a convergência inventiva de uma impressionante variedade de sabores e ingredientes e os saberes de gente que tem longínquas e comuns matrizes étnicas — as da grande e mui antiga China imperial.
Mas a comida de rua representa, na sua imensa variedade, tal como naquilo que partilha além-fronteiras, o desenrolar de caminhos singulares, de diferentes percursos culturais e sociais das sociedades da região. Vale a pena olhar para o exemplo da experiência histórica da Malásia e para a composição da sua sociedade. Primeiro, os chineses juntaram-se aos malaios no século XV, e foram depois os indianos chegando, levados pelos ingleses para mão-de-obra da economia colonial. Para esta caldeirada cultural também contribuíram, a seu tempo, temperos portugueses, holandeses e ingleses, pelo que a justiça impõe que se rabisque que as gastronomias ditas tradicionais — tal como nos ensina a história dos paladares asiáticos — muito devem umas às outras. Mesmo se podemos relatar uma interminável lista de invenções culinárias singulares em diferentes culturas, o contacto e a permeabilidade entre elas e a convivência e simultaneidade no espaço e no tempo de técnicas, ingredientes e condimentos acabaram por constituir o contexto da paleta com que se desenha a riqueza e a variedade gastronómica do Sudeste Asiático.