Ti' Giolanda, como é carinhosamente tratada, tem 83 anos, mas ainda consegue, como poucos, domar o vime com as suas mãos gastas. Ainda é de manhã e, na aldeia de Atenor, Miranda do Douro, esta natural de Águas Vivas, outro lugar mirandês, vai mostrando a sua "arte ruim", como lhe advertiu um dia a D. Rosa, a quem pediu que lhe ensinasse o ofício. Até porque este jeito não lhe vem de família. A mãe era costureira, mas Giolanda confessa que essa, sim, não era arte para si. "Não tinha paciência!" Por isso, não obstante os conselhos da sua mentora, decidiu-se pela cestaria.
É nesta envolvência que não podemos deixar de comprovar a agradável sensação da chegada, de termos acabado de aterrar num "outro" país. Não que Miranda do Douro seja longe de ponto algum num Portugal que, de Norte a Sul, soma pouco mais de 500km em linha recta, embora os seus acessos sejam demorados. Mas depois de entrarmos por Espanha e irmos habituando o ouvido a uma sonoridade diferente, vamos compreendendo esta terra que conseguiu manter viva uma língua que não é de terras lusas nem espanholas. E só isso coloca Miranda do Douro - e quem a visita - numa espécie de redoma que, se por um lado nos parece afastar do resto do país, por outro nos aproxima de uma paz como em poucos sítios. Além de nos sentirmos parte de uma identidade única. Mais ainda no nosso caso que, em estreia por estas bandas, não conseguimos despir uma espécie de pele de visitante estrangeiro.
A distância das grandes urbes, diga-se, não intimida Giolanda, que não se consegue imaginar a viver noutro lugar. "Aqui vive-se muito melhor: é o ar que se respira, a água que se bebe, aquilo que se come." "Por exemplo, recebo poucochinho de reforma", informa sem interromper o laborar dos dedos no vime, "mas nunca passo necessidade e às vezes até vou ajudando os filhos que vivem na cidade". "É que aqui há sempre uma horta."
Ua tierra, dues lhénguas
Enquanto conversamos, a mulher vai intervalando entre o português, que usa para conversar connosco, e o mirandês que, a julgar pelas próprias gargalhadas a lembrar uma garota de 15 anos, utiliza quando não quer que percebamos o que diz. Algo que hoje arranca sorrisos, mas que durante a maior parte do século XX foi sinónimo de falta de instrução. Aliás, durante anos a fio, aquela que é hoje a segunda língua oficial de Portugal foi "muito maltratada". Até (acima de tudo talvez fosse expressão mais apropriada) na escola, e por isso pelo menos uma geração perdeu o mirandês. "Era reguadas atrás de reguadas: a professora, que até era transmontana, não permitia que falássemos ou que escrevêssemos em mirandês. Mas ditava mal e porcamente: por exemplo, queria que escrevêssemos "vaca" mas lia "baca"", conta, entre risos e já sem ponta de amargura o sr. Domingos, 61 anos, após uma vida dedicada à História."Falar mirandês era sinónimo de se ser rude", resume.
Certo é que, tanto por algum preconceito como fruto das políticas da época, a língua mirandesa quase enfrentou a extinção antes do renascer a que se assiste actualmente. Mas não foi apenas a língua mirandesa que sofreu. Também as várias tradições da terra foram durante anos (quase) esquecidas. Houve uma altura, inclusive, que "não havia pauliteiros em parte alguma". "Felizmente hoje as coisas estão muito diferentes", reflecte Domingos, que, embora já reformado do ensino, mantém muito vivo o seu interesse pela História.