Há uns anos, Domingos assumiu, com a mulher, os comandos de um pequeno hotel rural em Malhadas, a 5km de Miranda do Douro. Para isso, recuperaram uma casa apalaçada, inserida numa antiga exploração agrária. E a propriedade acabaria por se revelar uma relíquia. Ao longo das obras, há cerca de cinco anos, foram encontradas lajes romanas, talhas funerárias e até marcas da Idade do Ferro (símbolos de um homem a dançar, de uma mulher grávida e de um guerreiro).
Enquanto aproveitamos o sossego das antiquíssimas e preservadas paredes em pedra e tiramos proveito da hospitalidade dos nossos anfitriões - em forma quer de licores caseiros, quer de um pequeno-almoço capaz de dar luta a muitos hotéis de cinco estrelas - , a rua é ocupada por imponentes vacas mirandesas. Por estas bandas, o gado faz parte da paisagem. E não será boa ideia acelerar em demasia pelas estradas transmontanas. A possibilidade de encontrar uma vaca em contramão é mais comum do que poderíamos imaginar. Aliás, a probabilidade de se encontrar qualquer espécie de bicho no meio do caminho não está fora de questão: ovelhas, cabras, cavalos e, claro, os afamados burros, que contam, desde 2001, com a ajuda da Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino (AEPGA).
De animal de carga a estrela
O objectivo inicial da AEPGA era, como o nome indica, proteger o burro transmontano. Mas o seu campo de acção estendeu-se de forma natural e hoje é uma das impulsionadoras da preservação de diversas actividades tradicionais, tais como a dos gaiteiros, à qual aderem cada vez mais jovens. Há, porém, outras tradições que "felizmente já não se usam", como nos conta um dos membros da Confraria do Mel. "Na minha aldeia", relata animada uma mulher nos seus quarenta, "eram "dadas" partes do burro às raparigas, e a parte dada representava o que ela era; e algumas partes, diga-se de passagem, não diziam muito bem de quem a recebia."
Enquanto isso, o cesto de Ti"Giolanda já começou a ganhar forma e está prestes a juntar-se aos outros já em exposição: nuns o vime sobrepõe-se; noutros vêem-se duas asas, noutros ainda, tampas. A seu lado, Maria da Glória, de 54 anos e residente em Vilar Seco (uma aldeia onde se fala também mirandês, mas já no concelho de Vimioso), mostra outra maneira de criar cestos: "Isto faz-se com centeio e silvas", explica, enquanto vai raspando as grossas cordas de silvas deitadas sobre o seu colo com uma pequena faca bem afiada. "Assim demora muito mais tempo. Enquanto aqui a Giolanda faz dois ou três, eu acabo um." A sua arte é, aliás, muito respeitada por quem já a tentou.
É o caso de Joana Braga, 31 anos e natural de Braga, que após o curso de Engenharia do Ambiente na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro rumou à pequena Atenor para ingressar num estágio profissional com a AEPGA. "E ainda aqui estou", conclui de sorriso aberto, enquanto vai abrindo um pacote de bolachas e as oferece a Giolanda e a Maria da Glória. Pelos burros, pela associação, mas também pela forma de viver dos mirandeses. E Joana não é caso único: a maioria das pessoas que faz parte da AEPGA não é da zona e a associação continua a receber estagiários de vários pontos do país.