Se o projecto inicial tivesse ido adiante, o Parque de Escultura Contemporânea do Almourol ligaria Vila Nova da Barquinha a Constância numa faixa verde constante. Asas cortadas, ficou pela Barquinha, onde vamos em busca de Shelter, obra de Gabriela Gomes, que é uma escultura habitável. Pode dormir-se neste “refúgio” em cortiça e madeira prensada com um quarto, hall e casa de banho; e um cesto com pequeno-almoço. Desencontramo-nos com os terceiros ocupantes da escultura; passados dois dias chegam os próximos — e há reserva para uma noite de núpcias. O cenário, sob salgueiros, é só Tejo: tão perto e tão longe. “Tirou-se muita areia, há uns anos, é perigoso. E a corrente também.”
Por este Tejo abaixo
Muita areia saiu do Tejo, mas mais abaixo veremos muita gente a aproveitá-lo. “Mais do que em outros anos”, reflectem os irmãos Rui e Luís Domingos. Agora sim, navegamos o Tejo à larga, entre Salvaterra de Magos e Cartaxo — não é o mar lisboeta, mas em compensação tem recantos “National Geographic”. Como quando percorremos passagens entre ilhas (os “mouchões”) e margem, e o barco como que rasga os juncos adivinhando vias líquidas nesta combinação de areias e vegetação que vive na água e na terra.
Não são, claro, artes divinatórias as que nos conduzem — a sonda fluvial instalada no barco ajuda a perceber quando temos apenas 80 centímetros de água debaixo do barco da Rio-a-Dentro, o sonho dos dois irmãos de Escaroupim tornado realidade há três anos. “Foi quando saímos daqui que percebemos o que tínhamos.” Netos e bisnetos de avieiros, pescadores que vieram de Vieira de Leiria, sobretudo, ganhar a vida no Tejo, nasceram eles próprios numa aldeia avieira — com os dois pés no rio, portanto. Conhecem-lhe as manhas e por isso são precavidos; conhecem-lhe as belezas e por isso contagiam.
As casas em Escaroupim (39°07’37” N 8°15’69” W) já não são palafitas; os cais sim, vários, curtos, dispostos na margem — em Palhota, um pouco abaixo o cais até foi remodelado. Também já não há muitos que vivam da pesca — ou melhor, não havia: começa a ver-se um regresso, nestes tempos de crise. Não é o caso do tio Zé, que sempre viveu da pesca e que agora, com 80 e muitos anos, quase surdo, continua a vir ao rio várias vezes ao dia. O pai foi um dos primeiros habitantes da aldeia, fundada pelo avô dos nossos guias — a história foi, em parte, contada por Alves Redol, no livro Avieiros. O tio Zé vem ver a maré, os barcos, o peixe. Vem porque sim, é a vida dele — como é a da dona Cacilda, que nunca pescou mas nasceu num barco. “Estava deserta por ver o Tejo”, brinca. Fez, sim, muitas redes de pesca, por exemplo, e agora é a orgulhosa responsável pelo museu — Casa Típica Avieira — e quem quiser visitá-lo só precisa de bater-lhe à porta (já lá foram televisões).
É quase uma segunda casa e até estão ali muitos objectos que foram seus, como uma mala de enxoval e muitos dos quadros (“Não quis estragar as paredes da casa nova”). Conhece-lhe bem os cantos: o quarto rosa das raparigas, o azul dos rapazes — “os pais dormiam no barco”; os instrumentos de pesca que se guardavam no sótão; a cozinha que não era dentro mas que ela pediu para replicarem. Viveu numa casa igual a esta, de madeira em cima de colunas, não muito longe daqui — ainda lá está, agora sobre caixa de cimento.