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Gonçalo Cadilhe, ávido de navegar

Um dos momentos fundamentais da minha existência terá sido a noite ancorado numa anónima lagoa de coral no arquipélago de San Blás, em águas territoriais do Panamá, à boleia no iate do italiano Federico a caminho da Colômbia. Porque é que o sono simplesmente não chegava? Porque eu sentia-me demasiado vivo e privilegiado para menosprezar este momento que eu sabia que nunca voltaria a repetir, que era único na minha vida. Ah, esquecia-me de mencionar uma coisa importante: a minha cama era o convés do iate. O texto: a Lua e as estrelas.

Outro momento a ressalvar de tanto navegar: a lenta subida do extensíssimo rio "das Amazonas", tal como o denominou Orellana quando o percorreu no sentido inverso ao meu, em 1541. Eu pretendia chegar ao Peru sem atravessar a Colômbia, onde tinha desembarcado depois da boleia de Federico: contornei esse país dilacerado pela guerra civil com um pequeno desvio de algumas semanas pela Venezuela e pelo Brasil. Em Manaus embarquei numa dessas improváveis balsas redentoras que quebram a solidão mais profunda das pequenas comunidades ao longo do Amazonas. Era a temporada das chuvas: uma vez mais a noite, agora sem Lua mas iluminada por tempestades de relâmpagos que seriam impossíveis em qualquer outra geografia; uma vez mais o silêncio e a contemplação; e uma vez mais eu na amurada, sem sono, vivo e deslumbrado a navegar.

Atravessei três oceanos em cargueiros. Precisei de tempo: doze dias para o Atlântico Norte, vinte e oito para o Pacifico Sul, outros vinte e sete para o Pacifico Norte e outros quinze para o Índico. Tudo junto soma três meses em que um homem entregue a si próprio - num caricato ostracismo de quem se sente passageiro persona non grata - navega numa operação marítima pensada para levar carga e não gente. "A nossa prioridade são os contentores, não as pessoas", repetiam os vários comandantes dos vários cargueiros que fui utilizando. E as outras pessoas eram de facto uma raridade.

E assim, sem quase nunca encontrar os tripulantes e sem outros passageiros com quem partilhar o espanto, eu passeava feliz da vida pelos conveses, sentava-me na ponta das proas, subia à torre da popa, olhava distraído, debruçado na amurada, os golfinhos dezenas de metros lá em baixo a saltar nos sulcos deixados pelos movimentos do motor, felizes da vida eles também. E de noite, sempre à noite, no silêncio e na contemplação que só o infinito líquido e ondulante dos oceanos permite, compreendia o mesmo que qualquer astronauta pode compreender: que este planeta nunca deveria ter sido chamado de Terra por ninguém, pois a sua substância fundamental é a água, e os indivíduos mais felizes da espécie humana são aqueles que a escolhem como caminho de viagem.

Naveguei como pude e onde pude esse épico internacional que é o Mekong, que nasce no Tibete, atravessa o Sul da China, faz de linha de fronteira várias vezes a vários países e, depois de quase cinco mil quilómetros de turbulência e poder, desagua no oceano Pacífico. Não tendo serviço regular de passageiros, muito menos de turistas, navegar o Mekong era um exercício complicado de cedências, saltos, improvisos. Mas não era um capricho; junto ao Mekong, e graças a ele, situavam-se algumas das mais bonitas marcas da presença humana na face do planeta. Ninguém devia ir-se embora deste lugar dentro de nós que é a Terra sem ter pelo menos visto os templos de Angkor, a cidade de Luang Prabang, as ruínas de Vat Phu. A questão não era: "para quê navegar o Mekong?"; mas, sim, "porque não o fazer já que estou nas suas margens?".

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