Fugas - restaurantes e bares

René Redzepi - chef do Noma

René Redzepi - chef do Noma Christian Charisius/Reuters

Este é o Noma, o melhor restaurante do mundo

Por Duarte Calvão

Na verdade, Duarte Calvão acha que não. Mas isto não quer dizer que a cozinha que o chefe René Redzepi pratica em Copenhaga não seja única e absolutamente inesquecível. Executada com um nível de perfeição obsessiva, a comida do Noma é alegre, surpreendente, colorida - e por isso vale todos os cêntimos que custa. A má notícia: arranjar mesa, com muita sorte, só no ano que vem. Uma reportagem de Outubro de 2010 que agora, que o Noma bisa o título de melhor restaurante do mundo, recuperamos:

Quando nos sentámos à mesa do Noma, parecia que não estavam à nossa espera. Além de um colorido jarro de flores ao centro, em cima da toalha não havia nem pratos, nem talheres, nem copos, nem nada. A estranheza com este “desleixo” foi ainda maior quando se sabe que o restaurante, situado num antigo armazém portuário num dos muitos cais de Copenhaga, foi eleito em Abril como “o melhor do mundo” pelos 800 membros do júri global que a revista britânica Restaurant consulta anualmente para escolher as 50 melhores mesas do planeta. Um mini-escândalo, já que destronou o mítico El Bulli, da Catalunha, chefi ado por Ferran Adrià, justamente considerado um dos melhores cozinheiros de todos os tempos. Desde então, o restaurante dinamarquês do jovem chefe René Redzepi, aberto em 2004, ao qual o prudente guia Michelin só atribui duas estrelas entre as três possíveis, tornou-se a coqueluche dos gastrónomos de todo o mundo e quem quiser reservar um dos seus 45 lugares só poderá tentar ter mesa para Fevereiro de 2011.

Tive a sorte de uns dias antes deste jantar receber uma SMS do chefe português Luís Baena, à frente do restaurante lisboeta Manifesto, que me comunicava que conseguira uma cobiçada reserva no Noma. Roído de inveja, respondi-lhe que tinha que me contar tudo na volta, enquanto maldizia estas cumplicidades entre cozinheiros que lhes permitem acesso a restaurantes quase interditos ao comum dos mortais. Por brincadeira e sem qualquer esperança, terminava a resposta perguntando se não me arranjava “um lugarzinho”. Qual não foi o meu espanto quando, no dia seguinte, Luís Baena me respondeu: “Está tudo tratado, jantamos às 18h30 locais”. Afinal, o chefe ia sozinho, já que entre os seus inúmeros afazeres só tinha conseguido tirar dois dias para a viagem. E assim lá alinhei alegremente neste “programa de milionário”, de ir jantar a Copenhaga e voltar na manhã seguinte... Valeram-me umas milhas da TAP que tinha para gastar e haver vários hotéis em Copenhaga que oferecem bons preços no Verão.

Quando entrámos no Noma, tínhamos à nossa espera o próprio chefe René Redzepi, que faz questão de receber pessoalmente todos os clientes, como depois verifiquei. Aos 32 anos, este filho de um imigrante albanês e de uma dinamarquesa aparenta não ter deixado a fama recente subirlhe à cabeça, conversando sem afectações com quem o visita, encerrando-se depois a trabalhar na cozinha, que se vê da sala. Foi nessa breve conversa que ficámos a saber que a sua mulher, de família dinamarquesa e inglesa, viveu uns anos em Portugal durante a infância, e que na sua equipa multinacional tem o jovem cozinheiro português Leonardo Pereira, natural de Santa Maria da Feira, que nos foi imediatamente apresentado e nos explicou que saiu há uns anos pelas cozinhas do Norte da Europa até aportar em Copenhaga.

Os aperitivos

Voltemos agora à mesa despida onde Luís Baena e eu nos sentámos. Poucos instantes depois, o chefe de sala (australiano) veio ter connosco para saber que menu queríamos. Escolhemos sem hesitar o maior, de 12 pratos. Sabese lá quando é que se consegue voltar a um restaurante destes, há que experimentar tudo o que for possível. Fomos informados que, antes, iriam servir-nos uma série de “aperitivos” e que o primeiro já estava à nossa frente.

Era o jarro de flores. Primeiro, uma bonita flor escandinava que escondia entre as suas pétalas corde-laranja um caracol confitado. A ideia era comer tudo numa só dentada, inclusive a parte superior do caule. Depois, do mesmo vaso, poderíamos petiscar as pétalas amarelas da “alcachofra de Jerusalém”.

Estava dado o tom do que iria ser a refeição. Lembrei-me imediatamente da primeira das duas vezes que estive no El Bulli, o grande “rival” do Noma. Foi em 1999, antes da “bullimania”, quando bastavam umas semanas de antecedência para reservar. Nos últimos anos, conseguir uma mesa lá é quase como sair a lotaria, entre centenas de milhares de pedidos vindos de todo o mundo. Também dessa vez fui surpreendido por uma série de aperitivos originais e um conceito de menu extenso, onde um “prato” poderia ser apenas uma colher ou algo que se comia à mão, com ingredientes tirados do seu habitual contexto. Por coincidência, ao examinar o currículo de René Redzepi, vi que ele tinha trabalhado no Bulli exactamente na temporada de 1999.

Ao contrário do que muita gente pensa, a influência do genial cozinheiro catalão não se resume a meia-dúzia de técnicas que ele desenvolveu (gelatinas quentes, espumas, ares, esferificações, gelados de azoto líquido, etc.), mas é antes uma nova maneira de ver a cozinha, onde introduziu conceitos como a surpresa, o divertimento, a descontextualização dos ingredientes, a apresentação dos produtos de forma diferente, aproveitando muitas vezes partes “esquecidas” ou menos valorizadas, a refeição como uma experiência sensorial complexa, que joga com as nossas memórias e emoções.

No Noma, encontrei tudo isso ao longo das mais de quatro horas em que estivemos sentados à mesa, uma duração de que os clientes são, aliás, avisados. Por isso, não faz qualquer sentido pôr o Noma “contra” o El Bulli, erro em que incorreram muitos jornalistas e críticos, como se o primeiro fosse o representante da “natureza”, já que Redzepi é conhecido por utilizar ingredientes desconhecidos que vai buscar às florestas e aos mares nórdicos, e Adrià o homem da “cozinha de laboratório”, com as suas espumas e fuminhos.

Na mesa do Noma, sucederamse uma série de aperitivos tão diversos quanto um alho francês, servido com rama e tudo, mas do qual só se comiam as raízes fritas e um pouco da parte branca; uma bolacha dinamarquesa com mirtilos e bacon; uma espectacular “sanduíche” de lâminas de pão de centeio com uma lâmina de pele de galinha crocante, sem pinga de gordura; pequenos rabanetes e cenouras enterrados numa “terra” que nos diziam para comer (aqui lembrei-me do “bosque encantado” de Quique Dacosta, outro genial cozinheiro da vanguarda espanhola, que também fabrica uma “terra” comestível) formada por ingredientes que não consegui identificar, embora Luís Baena me garantisse que levava beterraba.

Deste grupo de aperitivos, saiu menos bem o ovo de codorniz fumado, com a clara muito dura e a gema líquida, ao qual faltou algo que o espevitasse. Valia, no entanto, pelo nariz, ou seja, pelo fabuloso cheiro a fumado.

Há ainda um aperitivo radical na sua frescura: no topo de um pote com gelo, surgem dois pequenos camarões vivos, dos fiordes. Ao lado, um delicioso molho beurre noisette. Pegamos nos bichos a espernear, passamos no molho de manteiga e comemos.

Como se calcula, vários clientes não conseguem cometer este “assassínio” à dentada, mas haverá muita diferença entre pegar neles vivos e atirá-los para uma panela com água a ferver? Claro que há, mas é mais para nós do que para os pequenos animais. Os aperitivos terminavam com uma complexíssima tosta com nove ervas locais, ovas de bacalhau fumadas e pó de vinagre. O pão desfazia-se na boca, deixando-a com a predominante frescura das ervas, preparando-a para os 12 pratos que se seguiriam.

Os pratos

Neste conjunto de aperitivos, viu-se logo uma das grandes diferenças do Noma. Não há azeite, nem tomate, nem pão de trigo, nem nada que venha de fora do terroir nórdico.

Nas últimas décadas, pela mão de chefes franceses, italianos e espanhóis, a chamada alta cozinha ancorou no Mediterrâneo, tendose estendido à casa das pessoas e a muitos restaurantes. Hoje, qualquer pronto-a-comer de centro comercial apresenta-se como da “cozinha mediterrânica”. Por isso, sobretudo para nós que somos do Sul da Europa e da geração que apanhou essa moda em cheio, é muito interessante encontrar estes ingredientes nórdicos com tanta imaginação e qualidade e não nos monótonos pratos de salmão ou carne com puré de batatas que encontramos nos restaurantes comuns dos países do Norte.

Também não há concessões aos produtos de luxo da cozinha clássica, do foie gras e do caviar, nem às “fusões” com os orientais molhos de soja, wasabi, caris ou erva-príncipe. Durante toda a refeição, só as bebidas vêm de longe e isso porque não houve vontade de acompanhar o jantar com os vários sumos naturais de que o restaurante tem carta própria, muito tentadores com as suas cores vibrantes. Fomos antes, por sugestão do escanção, para o champanhe, sempre o mais indicado para condizer com menus muito variados, como era o caso. Para os aperitivos, um Blanc de Blancs (só casta Chardonnay), Les Beaux Regardes, da Bérèche (cerca de 120 euros). Para os pratos mais consistentes do menu, a sugestão do escanção foi para um La Closerie les Beguines, de Jérôme Prévost (cerca de 130 euros), que tinha a originalidade de ser feito unicamente de Pinot Meunier, a casta tinta menos utilizada na região de Champagne. Já se sabe que nos países nórdicos o vinho é sempre caro (sobretudo devido à elevada taxação) e o que se pode dizer é que escolhemos do mais em conta que havia na grandiosa carta de vinhos... Municiados de nova garrafa, seguimos então a nossa viagem pelos sabores do Norte, sempre apresentados em pratos de uma técnica e beleza imaculadas, que nos eram trazidos à mesa não só pela simpatiquíssima equipa de sala, mas também pelos próprios cozinheiros, que nos vinham explicar, visivelmente orgulhosos, o que tinham preparado. O nosso Leonardo veio diversas vezes, mas também uma australiana, um alemão, um colombiano adoptado por suecos e que não falava uma palavra de espanhol, vários dinamarqueses, todos contribuindo para o ambiente descontraído da casa, que com o avançar dos pratos ia proporcionando aquela atmosfera de alegria que só as grandes refeições conseguem atingir.

Salada com leite de avelãs, groselhas brancas e zimbro, umas extraordinárias e crocantes lâminas de vieira seca com agriões, cereais (biodinâmicos) e avelã, umas ervas locais, com destaque para as azedas, com zimbro, foram o início quase vegetariano do menu propriamente dito.

Pratos de construção perfeita, onde cada ingrediente parece ter sido minuciosamente escolhido e pesado, para que o resultado fi nal seja de um equilíbrio e de uma harmonia impossível de obter de outro modo.

Seguiram-se dois mariscos.

Primeiro, puseram-nos à frente uma pedra aquecida, com um lagostim (descascado) incrustado e, noutros locais do “prato”, pontos com molhos de salsa e algas. Absolutamente fantástico o ponto de cozedura do lagostim nórdico e a combinação com os molhos. Depois, pedras e algas com uma ostra em cima, trazendo o cheiro de mar à mesa. Não gostei especialmente da ostra, demasiado cozida, mas o aroma estava inesquecível.

Uma simples couve-flor trazia consigo o cheiro dos pinheiros, amparada pelo gosto forte do rábano e pela suavidade de um iogurte de soro de leite. Um extraordinário bolbo de aipo confitado conjugava-se com o aroma de trufas pretas. No penúltimo prato salgado, tivemos que cozinhar na mesa: uma frigideira aquecida, onde se punha manteiga para estrelarmos um ovo e para saltearmos diversas ervas, chips de batata davam o toque final a esta combinação vencedora, a lembrar vagamente os huevos rotos espanhóis. Finalmente, o único prato de carne, mais precisamente veado com tomilho selvagem, beterraba e frutos vermelhos, bastante inspirado nas receitas típicas do Norte. O meu paladar do Sul não aprecia lá muito os originais pratos de caça com molho de frutos vermelhos e também não encontrei grande interesse nesta versão, apesar da sua irrepreensível confecção.

As sobremesas e a conta

Para acabar, as três sobremesas surpreenderam pela leveza e pela forte presença de ervas. Feno e camomila aromatizavam azedas e outras ervas, maçã com alcachofra de Jerusalém e malte, os melhores mirtilos que já comi com outra espécie local de azedas. Quanto à conta, a desvalorização do euro face à coroa dinamarquesa e o alto nível de vida dos países nórdicos ( já para não falar do champanhe...) ajudará a explicar os cerca de 350 euros por pessoa, mas não há dúvida que vale cada cêntimo.

Terminado o jantar, em estado de perfeita euforia, fica a pergunta: o Noma é de facto o melhor restaurante do mundo? Para mim, não. O El Bulli, onde estive uma segunda e, infelizmente, última vez em 2004, continua a ser o melhor. É o restaurante mais marcante das últimas décadas, que modificou a forma de vermos a cozinha, que inspirou uma geração de cozinheiros, incluindo o próprio Redzepi. Quando Ferran Adrià o encerrar, em 2012, como já anunciou, deixará vários “candidatos” a ocupar o lugar do El Bulli, como o Fat Duck, em Inglaterra, o Celler de Can Roca, na Catalunha (respectivamente, terceiro e quarto na lista dos “50 melhores” da Restaurant). Já estive em ambos e são sem dúvida excepcionais, ao nível do Noma, mas não do já lendário restaurante de Adrià. Contudo, quando se tem uma experiência como este jantar no restaurante de Copenhaga, tudo isto dos “melhores” perde sentido. O que interessa é que estivemos perante uma cozinha única, desempenhada a um nível de perfeição obsessiva e que saímos com a certeza de que nos recordaremos deste jantar até ao fim da vida. Pode-se pedir mais do que isso a um restaurante?

Noma Strandgade, 93, Copenhaga, Dinamarca Telefone: (+45) 32963297 www.noma.dk Reservas: booking@noma.dk (no dia 1 de Novembro, recebem pedidos para Fevereiro de 2011) Cartões: aceita, mediante pagamento de respectivas comissões Encerra aos domingos e segundas-feiras Almoços: das 12h00 às 13h30 (fica aberto até às 16h00); jantares: das 18h00 às 22h00 (fica aberto até à 1h00)

Site oficial The World's Best 50 Restaurants
Noma (site oficial)

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