Fugas - restaurantes e bares

Rene Redzepi

Rene Redzepi Christian Charisus / Reuters

Os homens por detrás do melhor restaurante do mundo

Por Alexandra Prado Coelho

Há o chefe, claro, René Redzepi, que não se deixa deslumbrar por o seu restaurante ter sido considerado o melhor do mundo. Mas há outras pessoas por detrás do fenómeno Noma. Fomos a Copenhaga conhecer duas delas: um homem que cozinha bocados de madeira e um agricultor apaixonado por espargos. Pelo caminho, ainda os singulares queijos dinamarqueses e um chefe que cozinha a terra e o mar.

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René Redzepi, o chefe e os bivalves pré-históricos


Estamos no espaço de convívio dos empregados do Noma, em Copenhaga - que acaba de ser considerado, pela segunda vez consecutiva, o melhor restaurante do mundo - numa visita guiada pelo português Leonardo Pereira, quando aparece o chefe René Redzepi trazendo na mão o que à primeira vista parecem ser dois estranhos bivalves pré-históricos.

Redzepi está encantado com os espécimes - umas conchas cinzentas das quais saem dois pequenos pescoços enrugados que de vez em quando se movem ligeiramente. No telemóvel, o chefe tem fotografias de uns primos destes animais ("geoduck", em inglês) nos Estados Unidos, de tamanhos desmesuradamente grandes. 

O grupo de jornalistas estrangeiros convidados para um jantar no Noma encolhe-se um pouco e interroga-se sobre se terá que lidar com um daqueles animais nos pratos que se seguem. Redzepi garante-nos que não. Ainda está a estudar a melhor forma de os servir - "comem-se crus e são um pouco crocantes", explica - e se os veio exibir foi apenas como exemplo do que o mergulhador que trabalha para ele anda à procura debaixo das águas nórdicas.

Se estamos a falar dos homens por detrás do fenómeno Noma, Redzepi é certamente "o" homem (juntamente com o seu sócio Claus Meyer, o guru das novas tendências da cozinha escandinava). Aos 33 anos, o chefe, filho de um albanês que imigrou para a Dinamarca e de uma dinamarquesa, é um dos proprietários do restaurante que os outros chefes, críticos de gastronomia e gourmets elegeram, nos Prémios San Pellegrino de 2010 e 2011, como o melhor do mundo. 

Redzepi não parece impressionado. "Não acredito que possa haver o melhor restaurante do mundo", diz, ainda segurando na mão os dois bivalves feiosos. "É a mesma coisa que juntarmo-nos todos para decidirmos qual é a melhor cor do mundo. Não sei porquê, mas com a comida existe esta obsessão com o melhor. Não andamos sempre a escolher, por exemplo, o melhor filme do mundo."

Falsa modéstia? Não parece. Antes um esforço para não perder o pé naquilo que é realmente importante: manter-se fiel ao seu projecto de renovação da cozinha nórdica. "Digo sempre às pessoas que trabalham comigo que enquanto estivermos tão concentrados quanto podemos estar não há mais nada que possamos fazer." Alguém lhe pergunta como reage ao facto do "melhor restaurante do mundo" ter duas - e não três - estrelas Michelin. "Se nos concentrarmos nisso temos estes guias a controlar a nossa vida", responde, e volta a falar dos mariscos, que no fundo é o que lhe interessa realmente - agora já tem na mão uma concha e está a explicar-nos como se pode calcular a idade do bicho contando as linhas inscritas na concha. 

O que o preocupa neste momento é recolher legumes, plantas, enfim, tudo o que a Natureza oferece na Primavera, para começar a preservar esses produtos - através dos métodos tradicionais do fumeiro, salga, pickles ou secagem - para o próximo Inverno. "Acabámos de sair do Inverno mais duro de que tenho memória", conta. "E estamos mesmo no início da Primavera." O que significa que, na lógica de respeitar os ciclos da Natureza que é um dos princípios da nova cozinha nórdica, é altura de colher. 

Por essa altura da conversa já tínhamos tido oportunidade de provar perto de 15 pratos (muitos deles pequenas entradas) da nossa refeição. Jantar no Noma é também entrar no jogo. Redzepi não se limita a pensar na comida que cozinha - pensa também no teatro com que vai envolver a sua apresentação. E por isso a mesa em que nos sentamos - numa sala privada na parte de cima do restaurante, acolhedora, com peles nas costas das cadeiras, estantes com livros, música ambiente e uma vista sobre o canal - é, durante cinco horas, uma sucessão de surpresas, algumas delas, temos que confessar, um pouco embaraçosas. 

Os camarões vivos, por exemplo, são um clássico do Noma - "bons para quebrar o gelo", diz Leonardo Pereira - e um teste que é ultrapassado com a elegância possível por mais de 90 por cento dos clientes, garante-nos o chefe português. Apesar de irmos preparados para ele, no momento fomos incapazes. No resto da mesa ouviam-se gritinhos enquanto os convidados seguravam na mão os bichos que se debatiam, antes de os mergulharem num molho de manteiga e atirarem-nos para dentro da boca. 

Mas, podemos garantir, esta é mesmo a experiência mais radical que se vive no Noma. Tudo o resto é apenas uma sucessão de pratos com sabores subtis que se cruzam de formas inesperadas. Há momentos de hesitação (aquele ramo de pão de malte e zimbro e o "musgo" que o acompanha serão para comer?), de desorientação (o que fazemos com estas caixas de lata com desenhos, como as antigas de biscoitos, que nos puseram em cima do prato?), de desconcerto (os rabanetes crus estão mesmo enfiados num vaso de terra?), de deslumbre (o magnífico bife tártaro com azedas, estragão e zimbro, que deve ser comido com a mão), de pasmo (como conseguem cozinhar na perfeição este lagostim, que vem servido em cima de uma enorme pedra quente que é colocada no nosso prato?), de divertimento (o prato com três tipos de batatas, um dos quais os rebentos novos de batatas que permaneceram na terra um ano e meio), de admiração (os vegetais em pickles, enrolados em finas fatias, acompanhados de pequenas flores e de rodelas de tutano), de puro prazer (o iogurte de leite de cabra com azedas, coberto por uma lâmina de açúcar com sementes de anis). 

Tudo isto servido por empregados genuinamente empenhados em tornar a experiência inesquecível, que descrevem entusiasticamente cada prato e a procedência de cada vinho servido a acompanhar, e que em cinco horas não demonstram o mais pequeno sinal de quebra de energia. Deve ser este o tipo de concentração de que Redzepi falava e que parece, de facto, reinar na sua cozinha. 

Demasiado teatro quando o centro de tudo deveria ser a comida? No final há quem pense que sim (há mesmo quem se queixe da "falta de cheiro" nesta cozinha), mas a maioria dos convidados está encantada com os sabores puros que Redzepi nos trouxe da floresta nórdica.


Lars Williams
Upppss, comemos a árvore de Natal

Lars Williams trabalha num barco estacionado em frente ao Noma. Às vezes abana um bocadinho, mas isso não o perturba. Está geralmente concentrado nas experiências que conduz ali, no Nordic Food Lab (NFL), um centro de pesquisa ligado ao Noma (mas não só) e onde faz coisas improváveis como cozer lenha dentro de um saco de plástico. O que venha a surgir nas mesas do Noma nos próximos tempos pode ter nascido das experiências que aqui se fazem. 

Hoje, Lars quer mostrar-nos algas. Em cima da mesa estão caixas de plástico com vários tipos de algas secas que ele nos dá a provar. O que o NFL quer explorar é aquilo a que chamam a "floresta debaixo do mar" e que representa uma quantidade infindável de tipos de algas, historicamente ignoradas na cozinha tradicional nórdica (e basicamente na maior parte do mundo, à excepção do Japão). O sabor da alga encarquilhada que Lars nos dá a provar começa por ser salgado no início e depois ganha um travo a mar cada vez mais forte. 

Para já, o laboratório culinário está concentrado em cinco tipos de algas e sobretudo num deles, a alga vermelha da Islândia. Lars faz experiências para perceber, por exemplo, em que momento do seu ciclo de vida é que a alga tem o maior potencial nutritivo e o sabor mais interessante, e como é que esse sabor pode ser usado em sopas, pães, queijos, batatas fritas. "Não queremos usar algas apenas por usar. Queremos integrá-las de uma forma que faça sentido na cozinha escandinava." Se os japoneses as usam com peixe fermentado, talvez para os nórdicos usá-las com bacon faça mais sentido, arrisca Lars, dando-nos a provar um caldo morno com alga e um intenso sabor a bacon. 

A colaborar com Lars está Ole Mouritsen, um professor de Física Teórica apaixonado por comida e autor de um livro sobre sushi. Ao ver-nos perdidos entre tantos tipos de algas e utilizações possíveis para elas vem em nosso auxílio para nos explicar que o que se pretende é "redescobrir para a cozinha nórdica o uso das algas, que os nossos antepassados comiam diariamente". Aliás, falar em algas é profundamente injusto porque existem mais de 10 mil espécies diferentes, diz, e a palavra "alga" é tão genérica como simplesmente chamar-lhes plantas. 

Mas, admite, este processo de redescoberta ainda está no início. "Não comemos apenas para termos energia, as coisas têm que saber bem. É por isso que aqui se está a tentar encontrar o sabor mais interessante. É preciso brincar com os sabores - é isso que o Japão faz há imenso tempo." 

Brincar com os sabores, portanto. Experimentemos então agora o líquido que resulta da fermentação de um cogumelo com chá de verbena e, em versão alternativa, com sumo de cenoura ou de pepino. Lars anda à procura do umami (o "quinto gosto", para além do doce, amargo, ácido e salgado) e que resulta do cruzamento do glutamato com um sabor que o faça sobressair, que pode ser algo como bacon ou sardinhas, por exemplo. Os japoneses têm-no em muita da sua cozinha, do miso aos molhos de soja, mas os dinamarqueses querem chegar ao umami com sabores nórdicos. 

A atenção de Lars desvia-se agora para a cozedura dos troncos de bétula, que já estão prontos. O resultado é uma água amarelada, que poderá vir um dia a ser um chá. As experiências do NFL são várias, assim como as parcerias, que vão desde os produtores de queijo aos criadores de gado, neste caso a Rose Poultry, com a qual estão a tentar fazer - sim, é assim que eles colocam a questão - "a melhor galinha do mundo". A ideia é controlar a qualidade de vida da galinha, desde o que ela come até ao espaço que tem para viver, e a tudo o que possa tornar a sua carne mais tenra e saborosa. São galinhas que deixam viver mais tempo (em média 56 dias em vez dos 38 habituais) e têm uma alimentação muito cuidada, e dada à mão. As primeiras começaram agora a chegar aos restaurantes de Copenhaga, mas ainda é cedo para avaliar os resultados, diz Lars.

É altura de nos mostrar na prática o que se pode fazer com os sabores saídos do NFL. Lars vai cozinhar para nós nas cozinhas do Copenhagen Hospitality College. Primeiro, salmão fumado enrolado em pó de algas (o sabor é ligeiramente áspero), alho francês com um pouco de sal de algas, e um caldo com a mistura de algas e bacon, e vieiras fritas. 

Na cozinha, à volta do fogão, Lars empenha-se em cozinhar dois grandes aipos-rábano salteados em manteiga de cabra e com pedaços de tronco de bétula dentro da frigideira (o resultado será depois servido com trufas). Segue-se a "galinha experimental" (ainda não a versão final da galinha que estão a criar, mas o produto de uma fase intermédia) acompanhada daquilo que só podemos descrever como... a árvore de Natal: espargos assados com ramos de abeto, óleo de agulhas de pinheiro (verde escuro e muito saboroso), e rebentos frescos de pinheiro. 

Para terminar, Lars apresenta-nos um gelado de uma pálida cor rosada, com um molho cor de framboesa - que se vem a revelar ser um gelado de algas com uma redução de sumo de beterraba, e, em cima, para garantir um pouco de crocante, escamas de peixe salteadas. Para sermos inteiramente honestos, não sabiam a peixe. Mesmo assim houve quem saltasse a sobremesa. 


Soren Wiuff 
Os espargos são (praticamente) a vida dele

Cerveja de espargos - ainda estamos a meio da manhã e o agricultor Soren Wiuff já nos convenceu a provar a cerveja de espargos que ele está a produzir. "Os espargos não são toda a minha vida... mas quase", diz-nos com um sorriso simpático, o cabelo branco despenteado, os óculos de aros grossos, botas de borracha, a roupa de quem acaba de chegar do campo, a cadela a saltar-lhe em redor das pernas, e um inglês perfeito. 

Soren é um dos homens que aparecem no livro "Noma: Time and Place in the Nordic Cuisine" (editado em 2010 pela Phaidon), numa fotografia a preto e branco, no meio das suas árvores e acompanhado pela fiel cadela. Fornece a cozinha do Noma e dos melhores restaurantes de Copenhaga com os seus vegetais - espargos, claro, mas não só. Convida-nos a segui-lo para descobrirmos a quantidade de coisas que parecem apenas ervas daninhas e que são, afinal, comestíveis. 

Um passeio atrás de Soren é uma aventura. Agora é cebolinho que nos estende e o sabor é fortíssimo, a seguir são azedas, depois espargos azuis (disfarçadamente limpamos um pouco a terra antes de os trincar). "Quando olho para aqui vejo toda a beleza disto", diz, incansável a avançar pelos campos. "Vejo as coisas que são bonitas, que cheiram bem. As azedas não são apenas isto, são tudo o que se pode fazer com elas. Quando estou aqui não penso no Noma, penso em primeiro lugar em tudo o que me dá prazer."

Herdou as terras do pai e continuou a plantar espargos como ele fazia. Mas tem a sorte de ter nos chefes dos melhores restaurantes dinamarqueses pessoas que o compreendem, e que quando ele apresenta um espargo metade branco e metade verde, eles pensam imediatamente qual o melhor uso que lhe podem dar. Explica-nos, entusiasmado, como os espargos crescem rapidamente e como aquelas cabecinhas que vemos despontar por baixo dos montes de terra arenosa (antigamente aqui havia água, mas foi toda drenada) em breve serão espargos altos e elegantes. 

A conversa de um regresso à Natureza, que domina todo o movimento da nova cozinha nórdica (um amigo dizia, brincando, que não se admiraria de um dia ver o guru Claus Meyer a ser ovacionado por uma multidão num estádio enquanto, em cima de um palco, amassava pão) não impressiona muito Soren. O pai dele era um camponês pobre que comprou umas terrinhas em 1950, e a partir daí esta é uma história de entendimento profundo com a Natureza. "Claus Meyer disse para as pessoas irem para os bosques e apanharem ervas selvagens, mas se for assim em dez anos elas acabam. O que é preciso é introduzi-las na produção."

Mas há sobretudo uma coisa que dá prazer a Soren - vender os seus produtos a quem lhes reconhece a qualidade. "Quando se vende a um supermercado nunca se ouve "ahh, é um bom produto", porque, se elogiam, têm que pagar mais. É melhor vender aos restaurantes. Aí ouvimos o elogio mas também nos dizem quando as coisas não estão bem. Isso é muito importante para a nossa auto-estima. E os produtores têm que ter a auto-estima alta."

Porque o Noma foi considerado o melhor restaurante do mundo graças certamente à criatividade de René Redzepi, mas também graças às experiências de homens como Lars Williams, e às convicções - e, já agora, à auto-estima - de pessoas como Soren, o agricultor com uma paixão por espargos. 

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