Este fascínio pelas massas velhas e pelas fermentações longas é fácil de explicar. “Tudo na vida tem o seu tempo. E nós hoje não temos tempo para nada. Se se faz uma fermentação muito rápida, há uma série de reacções bioquímicas que não acontecem e que vão depois acabar por acontecer dentro de nós. As enzimas não fazem o trabalho antes e as nossas enzimas vão ter que o fazer no aparelho gástrico.”
Um pão feito com tempo, garante Mário, tem mais sabor, mais aroma, e tem um poder de conservação maior. E de que sabor estamos a falar? “O que acontece por exemplo com o pão alentejano é que fica mais acidulado. É bom ou mau? Certo ou errado?” É tudo uma questão de gosto, diz, e claro que há espaço para pães com características muito diferentes. O importante é não esquecermos que em Portugal existem pães muitíssimo bons — Mário cita o pão de centeio de Trás-os-Montes, as broas de milho branco e amarelo, o pão saloio de Mafra, os pães alentejano e do Algarve e ainda a broa de Avintes (que também tem um tempo de cozedura muito lento).
O problema é que “o nosso tempo é de azáfama e correria e não de espera”, lamenta. Mas esperar compensa. “Se tivermos quatro horas de fermentação já é bom, se forem dez é um pão cheio de sabor, e se forem 25 é um pão muito mais complexo. Sentimos que estamos a comer um pão com corpo e alma”, garante. “São razões suficientes para deixarmos que a vida leve o seu tempo.”
Cozinhar nos barros negros
Não foram só as três horas de forno — “no mínimo”, avisam-nos — que nos levaram a falar do cabrito do restaurante 3 Pipos, perto de Tondela. É que aqui há várias histórias e um respeito pelo tempo das coisas.
Expliquemo-nos: nesta casa o cabrito é cozinhado num recipiente de barro negro, e foi esta tradição dos barros negros que nos trouxe até Tondela. Ou, mais exactamente, a dois quilómetros e meio de distância, até à freguesia de Molelos, onde um punhado de olarias trabalha para manter viva esta arte antiga. Visitamos primeiro a Olaria Moderna, onde António, o oleiro, nos mostra como se trata este barro, desde o momento em que é extraído, cheio de pedras e pedaços de ervas, até ser transformado numa peça utilitária ou decorativa.
Mas o que faz a diferença relativamente a outros barros é a cor preta. Tradicionalmente a loiça era cozida em “soenga”, numa cova cavada no chão, dentro da qual se punham as peças empilhadas, e que era depois coberta com torrão. “Deixava-se um orifício em cima para servir de chaminé e alguns buracos à volta, até as peças ficarem incandescentes — são precisas cinco horas para chegar aos 850 graus. Para dar o preto ao barro usa-se lenha de pinheiro com resina, e elimina-se totalmente o oxigénio do forno”, explica António. No final, as peças, já negras, são polidas com um seixo do rio, também ele brilhante de tão polido. “Estes”, aponta António para as pequenas pedras, “já eram do meu avô”.
Hoje usa-se o forno em vez da soenga e as peças ganham uma cor mais uniforme, diz o oleiro, que na década de 1980, com 14 anos, se pôs a aprender esta arte e hoje faz parte do grupo de oleiros empenhados no renascimento dos barros negros — um projecto que tem o apoio da Câmara de Tondela. Ao grupo pertencem também Carlos Lima e Xana Monteiro, que, não sendo da região, instalaram-se aqui há 25 anos e têm trabalhado o barro negro com uma linguagem mais contemporânea, fazendo peças que podem ser utilitárias ou decorativas. Xana explica que há um filão deste tipo de barro que vem de Espanha e que os barros negros se desenvolveram ao longo dele.