A última visita que fazemos, antes do jantar em que vamos provar o cabrito feito nos barros negros, é à olaria Artantiga, dos irmãos Lourosa, que exibem orgulhosamente na parede uma fotografia do avô, que já se dedicava à arte.
Seguimos então para o jantar no 3 Pipos, onde há várias horas o cabrito está no forno, devidamente arrumado dentro dos tabuleiros de barro negro. Esta antiga adega de paredes de granito é uma das embaixadoras do barro negro da região, que usa para cozinhar, para servir à mesa e, desta vez, vai usar também nos pratos em que vamos comer, e que foram feitos propositadamente para a ocasião pelas três olarias que visitámos.
Na enorme cozinha quem manda é Maria de Jesus, mais conhecida como Jú, que aprendeu com a sua mãe, a dona Fernanda. Os chefs convidados para este jantar de divulgação dos barros negros vestem as suas jalecas mas pouco têm a acrescentar: o cabrito já está a sair do forno e cheira muito bem e o arroz de costeletas acompanhado por grelos está divino.
E também aqui muito tem a ver com a arte de saber esperar — seja no trabalho dos oleiros seja na cozinha da dona Jú. No barro negro, o calor transmite-se aos alimentos de uma forma lenta, mas mantém-se também muito mais tempo. Talvez por isso, como diz Carlos Lima, o oleiro, “a terra cozida dá à comida um sabor característico, um sabor do tempo dos nossos avós”.
O peixe transformado em “vidro”
Sashimi pode ser peixe cru e levar a preparar o tempo de cortar uma fatia. Mas isso também pode ser enganador. A cozinha japonesa tem também muito a ver com o tempo, sabores quase puros (como o do peixe cru) que se misturam com complexos sabores fermentados. Um deles, talvez um dos mais complexos da culinária japonesa, é o do katsuobushi. É dele que nos fala Pedro Almeida, chef do restaurante Midori, no hotel Penha Longa, em Sintra, quando lhe pedimos um exemplo da intervenção do tempo num produto japonês.
“O katsuobushi está na base de praticamente todos os nossos caldos”, explica. “É um pedaço de bonito [peixe da família do atum] que passa por um processo de quase vitrificação. É muito interessante, porque primeiro é cozinhado, depois fumado, a seguir inoculado com uma série de leveduras, e, pela acção do tempo, fica quase como se fosse uma pedra. Para ser usado é lascado e as lascas, ou flocos, são usadas para o nosso caldo.”
O tempo faz aqui toda a diferença. O produto com o qual se inicia o processo não tem nada a ver com o produto que se obtém no final. “No início é mole e tem muito sabor a ferro. Depois vai perdendo todas as características que tinha do fresco e começa a distanciar-se cada vez mais do produto original. As leveduras [esta fase do processo dura umas seis semanas] vão fazer com que guarde o sabor do fumado mas puxam muito mais pelo salgado. E o aspecto faz lembrar o vidro, como se as fibras deixassem de ser do reino animal e passassem para o vegetal”, explica Pedro Almeida. “Para retirarmos os flocos usamos uma polaina quase como a dos carpinteiros.” Estes flocos — é só sob esta forma que o katsuobushi se consegue encontrar em Portugal — são mais leves do que penas e esvoaçam no ar indiferentes à gravidade.